Homenagem póstuma a um homem que pautou sua vida na bondade
Nove anos e alguns meses foi o tempo que trabalhei no escritório de serviços agrícolas da Usina Rafard, na época um dos pertences da “Societé de Sucreries Brésiliennes” (SSB). Era chefe do escritório o Sr. Henrique Diez e das culturas o Sr. Luiz Mialhe, ambos de saudosa memória. A sala do Sr. Mialhe era separada do escritório onde eram dispostas as seis mesas dos escriturários.
Era dia de festa esportiva em Rafard, ponto facultativo no Estado, mas a Usina trabalhara até o meio-dia. Eu tinha um compromisso: discursar na inauguração da quadra de Bola ao Cesto e Vôlei do Rafard Clube Atlético, resultado da fusão do Elite F.C., fundado em 1924, e do União Rafardense F.C., em 1930, sociedades que deram vida, alegria e divertimentos à vila até 1943, quando da fusão. Pouco durou o R.C.A.. Mal dirigido também ficou na saudade.
Fazer discursos era comigo mesmo. Lembra-me o inesquecível mestre, orador, eloquente, Prof. Vinícius Stein Campos que, brincando, me dizia: Eu pago para fazer discurso. Eu pagava para ouvi-lo discursar.
Pois bem. Meia hora antes do encerramento do expediente dirigi-me ao Sr. Mialhe.
Sabia que não era permitido a ninguém, se não a serviço, andar em condução da fazenda, não obstante, fui pedir licença para viajar na camioneta do enfermeiro auxiliar do Dr. José Soares Faria, que saia do escritório ao meio-dia. Disse-lhe o motivo. Licença negada. “Não posso abrir exceção”, disse-me. Sai da sala maçado…
Lá pela década de 1920, o Sr. Mialhe trabalhava na Usina de Açúcar de Vila Resende –
Piracicaba – também da SSB, e meu pai era administrador da fazenda Santa Lídia.
Eu beirava os seis anos de idade. Quando o Sr. Mialhe ia a Santa Lídia, a serviço, teve ocasião de saborear o café e o bolo feitos e servidos por minha mãe. O tempo voou, deu voltas… Nas asas do tempo viemos parar em Rafard. Encontramo-nos no escritório da fazenda São Bernardo. O Sr. Mialhe, como chefe das culturas, eu, modesto escriturário. Minha mãe em um daqueles dias sofreu derrame cerebral e entre as suas principais refeições contava-se o leite. A vila, e outros lugares da região, estava sem o precioso alimento em virtude do prolongado estio. Em vão, eu o buscava. Minha esperança: a “Cooperativa de Consumo” dos trabalhadores da Usina. Fui falar com o gerente. Expus-lhe a necessidade do leite a minha mãe. “Não posso vendê-lo a não sócio, só com ordem do Sr. Mialhe”, disse-me. “Por favor. fale com ele”. O Sr. Mialhe não deu a ordem. Morria a esperança de consegui-lo da Cooperativa. No dia seguinte, de manhã, a mando dele, minha mãe passou a recebê-lo.
Encerrando o expediente saia às pressas. O Sr. Mialhe à porta. “O Sr. vai fazer discurso?” ”Vou.” “Quer aproveitar a minha condução? “Não. Obrigado, vêm-me buscar.” Gorda mentira.
Do escritório a minha casa – Praça da Bandeira – contava-se 4 km aproximadamente. Ora a passos largos, ora correndo, cheguei a tempo para o banho, para o almoço e para o cumprimento do meu compromisso. Mas não foi fácil a caminhada sob o sol do meio-dia. Vinha resmungando, arrependido por não ter aceitado a condução daquele homem que tinha um coração feito de bondade. Preço do orgulho do moço que ainda tinha muito a aprender na escola da vida.
Quando cumprida a missão do Sr. Luiz Mialhe na Terra (22-04-1953), em meu nome e em nome dos colegas, rendi-lhe, à beira de sua sepultura, a homenagem de nossa estima e do nosso respeito.