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O Sistema Único de Saúde brasileiro é melhor que cloroquina

Médicos de famílias capivarianas dão seus depoimentos do front, e apostam na qualidade e capilaridade dos serviços do SUS

No último domingo de Páscoa o papa Francisco falou aos movimentos sociais e ativistas que, hoje, assumiram trincheiras desguarnecidas, como é o caso de bairros periféricos de grandes capitais.

Esse pessoal vem minimizando os efeitos mais perversos sobre os mais vulneráveis – as populações de rua, favelados e brasileiros sem condições de permanecer em isolamento por falta de um tudo.

No dia em que o Brasil ultrapassou o número de mil mortos pela Covid-19, Francisco disse: “Se a luta contra a Covid-19 é uma guerra, vocês são um verdadeiro exército invisível lutando nas perigosas trincheiras. Um exército que conta apenas com as armas da solidariedade, da esperança e do sentido de comunidade que renasce nestes dias nos quais ninguém se salva sozinho.”

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Mas ao transportarmos a metáfora do front para nossos hospitais, públicos ou privados, uma analogia mais celestial pode ser feita em relação aos médicos e os profissionais da saúde – são eles os anjos que, até o final da pandemia arriscarão suas próprias vidas para tentar aplacar o sofrimento dos doentes, e, quem sabe, evitar milhares de casos fatais.

A pergunta que fica, então, é: “estão os médicos, intensivistas e voluntários, sendo bem atendidos em um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, o SUS – Sistema Único de Saúde?”

O que sabemos é que, arregimentados para esse novo pelotão, eles precisarão contar com a ajuda do comportamento da população. Para barrar a virose, o confinamento deveria ser de 70% se quisermos minimizar a velocidade de propagação da virose do novo SARS-Cov-2 (nome oficial do coronavírus causador da atual Covid-19) – para se ter uma ideia, esse vírus chega a ser quatro vezes mais rápido no contágio e cinco vezes mais letal do que seu parente próximo, o vírus H1N1.

Além desse remédio gratuito, mas em falta na casa de muita gente, é o próprio SUS o principal paciente, segundo as autoridades ministeriais. Na comunidade internacional uma regra foi tirada: se o sistema de saúde estiver fortalecido, será possível atender mais pessoas em melhores condições de tratamento.

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Foto ilustrativa

Bem verdade que e o SUS está longe de ser ideal (não possui estruturas de hotelaria com o conforto ideal dos grandes hospitais particulares), mas ele é considerado nossa maior arma nessa guerra, cujo inimigo é invisível. Sabemos que a estrutura está lá, disponível em todo o país, mesmo que os leitos de UTI estejam longe da capacidade requerida.

Conforme levantamento realizado pela Rede Nossa São Paulo, “apenas 3 das 32 subprefeituras da capital concentram 6 em cada 10 leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Sistema Único de Saúde”. Além disso, as regiões da Sé (região central), Pinheiros (zona oeste) e Vila Mariana (zona sul), consideradas nobres, concentram a maioria (57,4%) dos leitos de UTI existentes na cidade.

Diagnóstico diferente daqueles das sete subprefeituras, onde vivem cerca de 20% dos paulistanos, onde não há um único leito desse tipo – é ali nas regionais de periferia como Aricanduva (zona leste), Campo Limpo, Cidade Ademar, Parelheiros (zona sul), Jaçanã, Perus (zona norte) e Lapa (zona oeste) que moram esses quase 2,4 milhões de habitantes. Além disso, capitais como Manaus e Fortaleza já estão em seus limites; São Paulo e Rio de Janeiro atingem 80% de sua capacidade.

Com este quadro, como, afinal, está sendo a rotina de médicos da rede pública durante a pandemia? Há equipamentos de proteção adequados ou em quantidade suficiente? Enfim, como tem sido a resposta desse paciente chamado SUS, cuja missão é atender indiscriminadamente a qualquer dos 220 milhões de brasileiros que necessitem dele?

Gente da terra

Respostas vêm de alguns profissionais da saúde, gente de Capivari, que trabalham em vários lugares do estado de São Paulo.

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Dr. André Luis Albiero (Foto: Arquivo pessoal)

Para o médico André Luis Albiero, “o SUS é um sistema muito capilarizado e atende de fato indiscriminadamente; mas agora estamos com mais recursos e fluxos menos burocratizados; isso é um alento”.

Hematologista do banco de sangue do Hospital das Clínicas, na capital, ele atua ainda como clínico geral no hospital municipal “Prof. Alípio Correa Neto”. O hospital de periferia atende mensalmente cerca de 16 mil pessoas nas regiões de Ermelino Matarazzo e Ponte Rasa (a região tem população estimada de 208 mil pessoas).

Em dias normais, o médico recebia entre 18 e 20 pacientes no pronto-socorro. Mas, desde o início da pandemia, ele tem recebido um número até menor e estável de pacientes a cada manhã – agora atende entre 5 e 10 no mesmo período.

Um dos fatores para essa mudança foi que pacientes de AVC ou com problemas cardíacos minguaram “misteriosamente”, dando lugar àqueles com sintomas respiratórios que começam a crescer. Além disso, “não havia esse sentimento de medo”, explica ele.

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Dr. André Albiero e equipe no hospital municipal SP (Foto: Arquivo pessoal)

“O grande problema tem sido o estresse e o ‘climão’ que há entre os pacientes, terrivelmente amedrontados pela gente debaixo daquelas roupas. E os funcionários, com medo de se contaminar”.

Fato é que o fluxo do hospital teve uma reviravolta, pois “quando os pacientes pioram da parte respiratória, encaminho para uma UTI recém-designada (Choque III) dentro do próprio hospital. Quando melhoram, dou alta, evidentemente. Se não, são reencaminhados para outros hospitais de referência para a Covid-19 – Hospital “Tide Setúbal” e Hospital de campanha montado no “Estádio do Pacaembu”, detalha Dr. André.

Para ele, o bom atendimento já existente, foi apenas “turbinado” com os novos recursos emergenciais.

A fisioterapeuta respiratória Daniela Bresciani Raulino, com especialização no hospital Cleveland (EUA), também é de “família da terra”.

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Daniela Bresciani, fisio pulmonar do Hospital municipal de Sumaré (Foto: Arquivo pessoal)

No Hospital Estadual de Sumaré (SP), onde atende a pediatria, o que houve foi a estruturação de um plano de contingência para atender a expansão da virose – a UTI adulto com 16 leitos foi transformada em UTI Covid-19, sendo a primeira transferida para o centro cirúrgico. A unidade intensiva está, hoje, com 10 pacientes internados, “a maioria em estado grave, entubados, apesar de apenas um único caso confirmado”, conta.

O estresse nesse hospital é normal com a situação, mas o pessoal está confiante nas suas condições, que ela credita como excelentes. A fisioterapeuta especializada trabalha ali há 20 anos, e confirma ser um dos melhores do interior de São Paulo.

O Hospital “Dr. Leandro Francheschinni” é administrado com metas de produtividade e qualidade por convênio mantido entre a Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP) e a Unicamp – Universidade Estadual de Campinas, desde setembro de 2000. Após reformas, tornou-se o HES-Unicamp, um dos maiores da região metropolitana de Campinas, 100% SUS.

Espera-se também que haja aportes suficientes, embora haja desconfianças na condução das soluções por parte das instancias competentes federais. Mas Daniela acredita no SUS, e acha que sem a saúde pública universalizada as coisas desandam.

Reforços para o combate

Em meados de março, o governo federal liberou um total emergencial de R$ 147,3 bilhões, a serem injetados diretamente na veia da economia brasileira nos próximos 3 meses. Desse total inicial, R$ 5,1 bilhões foram destinados exclusivamente para o enfrentamento da Covid-19 e a montagem da estrutura paralela, que incluiu os hospitais de campanha, compra de equipamentos de proteção (EPIs) e insumos laboratoriais. Uma pequena parte chegou aos hospitais universitários federais através do Ministério da Educação.

Há poucos dias, o Ministro da Economia também declarou que os estados brasileiros terão seus aportes mensais habituais “dobrados”, sendo bombeados às secretarias estaduais de saúde para uso em suas regiões.
Ainda não chegou! Exemplo mais palpável de mitigação dos sintomas vem da Câmara Municipal de São Paulo, que deverá destinar R$ 38 milhões de recursos próprios para as áreas da Saúde e Assistência Social.

Os recursos municipais chegarão através de um Projeto de Lei coletivo dos vereadores, já votado em primeira discussão no último dia 08/04. O dinheiro é proveniente de medidas de economia do Legislativo, que está depositado no Fundo Especial de despesas da Câmara. Uma vez aprovado, a transferência será automática.

O dinheiro que está chegando de um lado e outro ainda é pouco, e tem demorado, dizem especialistas. E mesmo sendo ao todo de cerca de 3,5% do PIB, segundo as fontes oficiais, haverá necessidade de novos aportes. É preciso considerar também os auxílios às pessoas, e pequenas e médias empresas etc. Economistas estimam que ainda faltem R$ 200 bilhões.

EPI’s tem também, mas e os testes?

Ao menos os EPI’s disponíveis para a segurança desse exército alado, parece estar chegando. Outra médica nascida em Capivari, Dra. Eloísa Pellegrini, confirma que na Baixada Santista, os profissionais estão guarnecidos.

“Nos hospitais em que trabalho há bastante equipamento. Não faltam máscaras, roupas, gorros ou luvas. Isso vem acontecendo tanto no hospital da Unimed, em Santos, quanto no Pronto Socorro infantil do hospital municipal “Vicente Carvalho”, do Guarujá”, diz a pediatra.

Na região santista, as prefeituras somam mais de 1.300 casos suspeitos (em investigação) e outros 200 pacientes internados com sintomas semelhantes aos da Covid-19. Ainda com números baixos de infectados, o território têm 269 casos confirmados do novo coronavírus, com um total de 24 mortes.

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Foto: REUTERS/Thomas Peter/Direitos Reservados

Uma peculiaridade da pediatria é o fato de as mães terem sumido das urgências. Elas, que costumam levar os filhos ao PS por qualquer ocorrência, deixaram os PS infantis às moscas.

A médica conta que “na pediatria, a situação ainda está tranquila – as mães morrendo de medo de pisar em hospital têm levado as crianças apenas em último caso. Mas acredito que no pico esperado para final do mês esse cenário deve mudar”.

Ela aposta em abril como o mês com muitos casos de insuficiência respiratória, muito comuns em crianças nesse período – asma, bronquiolite, H1N1 etc. Ainda assim, o prognóstico é de que “muitas crianças com sintomas que requeiram a colheita de swab (para testes) chegarão, mesmo com as escolas fechadas, o que diminui naturalmente o contágio entre os pequenos. E, se houver mães sintomáticas, serão encaminhadas para a clínica médica”, completa.

Mas um detalhe importante é de que “há inclusive protetores faciais e outros equipamentos que chegaram por doação. Desde 15 de março já tínhamos luvas, gorros, toucas, aventais. É importante salientar que os equipamentos são equivalentes, seja no hospital da rede SUS quanto na Unimed”.

Se em São Paulo temos mais médicos contratados, e não faltam (até aqui) os EPI’s, os testes são a fraqueza do doente. Dr. André, por exemplo, agendou por conta própria seu exame, visto a escassez de testes, o que ele considera muito ruim. A falta de kits para detecção não é por falta de dinheiro, lembra ele, “mas por falta de insumos. A fila de testagem para o Estado de São Paulo está em 15 mil exames hoje (dados coletados até o fechamento desta matéria – 15/04/2020, às 16h45)”.

Sem testes massivos é difícil comparar as curvas de contaminação no mundo, mas conforme os atendimentos seguem, fica praticamente confirmado o crescimento de contágios pelo SARS-Cov-2: “de todos os pacientes atendidos até aqui, os achados tem sintomas muito característicos, e há até uma certa monotonia nas prescrições médicas… porém, até agora, nunca recebi um resultado de exames”.

Os efeitos colaterais para o SUS

“Eu acho que o SUS revela-se uma das políticas sociais de saúde melhor organizadas do mundo. Segundo consta, melhor que os EUA. No Brasil, é universal – atendemos indiscriminadamente ricos, pobres, com plano de saúde, sem plano de saúde, brasileiros, bolivianos, haitianos… Quem vier. É muuuito abrangente e muuuito caro”, enfatiza Albiero.

“Não sabemos se haverá um legado ao SUS pós-pandemia. Se prevalecer a inteligência, sim, sairá fortalecido”, acredita o hematoterapeuta. “O conceito e estruturação do SUS são muito bons; e havendo recurso, funciona”, defende ele.

O SUS como o conhecemos remonta aos anos 80, tendo saído consagrado da Constituição de 1988. Um sistema de saúde que prevê atendimento gratuito a mais de 200 milhões de pessoas não é pouca coisa, isso nos damos conta agora. Mas ainda poucos sabem que ele foi um efeito colateral da famigerada “gripe espanhola”… Se as comparações à guerra (tínhamos saído da 1ª Grande Guerra em 1914), e ao ataque e letalidade daquela “gripezinha” de 1918 são vários. É importante lembrar que à época não havia nenhum serviço especializado para tratar os brasileiros; nem mesmo tínhamos um Ministério da Saúde.

Após a mortandade, que chegou a 50 milhões em todo o mundo, e atacou em cheio a sede do governo nacional no Rio de Janeiro, muita gente bem posicionada parou para pensar. Vários deputados e senadores foram acometidos, e a capital viu a morte do presidente recém-eleito, Rodrigues Alves, em janeiro de 1919.

Os hospitais e cemitérios abarrotados não davam conta da classe mais abastada, menos ainda dos pobres, que eram atendidos pelas Santas Casas e a Cruz Vermelha. Esse pandemônio levou o deputado Azevedo Sodré a apresentar um projeto para promover a Diretoria-Geral da Saúde Pública, até ali subordinada ao Ministério da Justiça, a status de ministério.

Isso só aconteceria em 1930; antes, na virada para os 1920, o Congresso Nacional e o presidente Epitácio Pessoa sacramentaram uma grande reforma e estruturação da saúde pública federal.

Outra curiosidade é a fé na cloroquina, que nada mais é que o quinino, já indicado contra a gripe espanhola, causando as mesmas polêmicas. É por isso que a sugestão no tratamento da Covid-19 surgiu tão rapidamente; além de já ser conhecida, há trabalhos científicos de 2005 indicando a hidroxicloroquina como potente inibidor de infecção e disseminação de SARS por coronavírus.

A despeito de muitos médicos acreditarem em sua potencial prescrição, é preciso tomar cuidados – à época da gripe espanhola era recomendado beber cachaça, mel e açúcar, o que deu origem à popular caipirinha.

Por Isabel Gnaccarini
Jornalista e doutoranda em Ambiente e Sociedade pela Unicamp

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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