07/08/2015
O pai que chora no banheiro
Ronaldo perdeu o filho mais velho de câncer há pouco mais de um ano, mesma época em que foi deixado pela esposa; hoje, seu único objetivo é viver intensamente ao lado dos outros dois filhos, sendo pai e mãe ao mesmo tempo
CAPIVARI – A conversa com Ronaldo da Silva fluiu com a tranquilidade de um livro que revive sua história todos os dias. O conjunto de páginas é breve, mas as palavras são intensas. No escritório da marcenaria que ele divide com outro profissional na Rua Coronel Delfino, em Capivari, foi deixando as sílabas, letra por letra, saírem calejadas, porém, vez ou outra precisou brigar com as lágrimas, que insistiam em querer se achegar.
O pai de família, que aos 45 anos faz bicos como mãe até altas horas, segue uma rotina exemplar e tem a colaboração dos filhos para que os afazeres não se acumulem ao longo da semana. Renan, de 21 anos, e Vitória, de 13, ajudam a lavar a louça e a limpar a casa. A cada um cabe também a responsabilidade de arrumar a cama ao se levantar e colocar num cantinho no chão toda a roupa suja para Ronaldo pegar.
De manhã, ele leva a filha à escola e segue para a marcenaria, onde trabalha até às 11h, quando volta para casa preparar o almoço e, em seguida, busca a caçula para comer. A residência é próxima da escola, que fica na Vila Fátima. Depois, o homem retorna à marcenaria, a 1,5 km dali, onde permanece até o fim da tarde. Por volta das 15h, Vitória costuma ir ao trabalho do pai fazer um pouco de companhia a ele.
O largo galpão para o qual Ronaldo se mudou há pouco mais de 15 dias é bem organizado. De lá, saem móveis e outros artigos em madeira novos ou restaurados. Sempre teve muito serviço, não só de Capivari, como também de cidades vizinhas e até mais distantes, como Campinas, Indaiatuba e São Paulo. “Agora aumentou, porque tem mais visibilidade. Antes eu ficava na Rua Osvaldo Cruz”, conta.
À noite, depois que a filha janta, Ronaldo volta ao trabalho mais uma vez. Lá, ele fica até umas 23h e, às vezes, nem vai dormir quando chega em casa. “Quando eu chego tenho de lavar roupa, recolher e dobrar.” A faxina ele deixa para sexta-feira ou sábado, sabendo que terá de dedicar o dia todo na arrumação. “Porque limpar não é só passar pano”, adverte o marceneiro.
Quem vê o Ronaldo de hoje nem imagina tudo o que ele e os filhos já passaram. Há dois anos, o marceneiro foi abandonado pela esposa que se relacionou com outro homem após 25 anos de casamento. Mesmo sabendo da traição, Ronaldo permaneceu calado por um tempo, porque o filho mais velho deles, Ramon, tinha acabado de descobrir um câncer na região do abdômen.
“A princípio ele tinha uma diarreia. Foi uns três meses indo no SUS, até que ele parou de trabalhar. Eu achava que ele estava doente, então levei no particular para fazer alguns exames”, conta Ronaldo, que chegou a pensar que o filho estivesse com aids. “Mas a gente conversava muito e ele falou que nunca tinha tido relação com ninguém.” Na época, Ramon tinha uma namorada, a Taís.
Mesmo assim, depois de passar por alguns médicos que não souberam dizer o que o rapaz tinha, Ronaldo levou o filho para fazer exame de HIV e, naquele dia, encontrou uma infectologista, que atendeu o rapaz e identificou um tumor aparente na barriga. “Se ele ficasse sem camisa eu via, mas a gente não tinha o hábito de ficar sem camisa em casa, e ele também não contou nada.”
O jovem, então com 21 anos, iniciou o tratamento em Piracicaba um pouco tarde, depois de passar por especialistas em Capivari, que indicaram os melhores procedimentos. Um deles chegou a se espantar com a gravidade do caso. A cirurgia para retirada do tumor só serviu para comprovar que ele era maligno, mas Ronaldo disse que Ramon não percebeu nada. “Ele achava que estava melhorando.”
Ainda com os pontos, o médico aconselhou o pai a levar o filho à Praia Grande, já que o sonho dele era conhecer o mar e sentir os pés na areia. A viagem demorou o dobro de tempo pela quantidade de paradas que foram necessárias. Ramon era açougueiro de um supermercado da cidade e cursava o segundo ano de Ciência da Computação, mas trancou a faculdade um pouco antes de ser diagnosticado.
Três dias antes do aniversário de 22 anos, Ramon passou mal e precisou ser internado às pressas. Antes de ficar doente ele era forte, comia bastante e até fazia academia, segundo o pai. Agora estava cada vez mais magro, e a pele, que já era clara, ia perdendo a cor, ressaltando os grandes olhos azuis e serenos, apesar de tudo. “Ele nunca reclamava. Ele tratava a doença como se fosse uma gripe.”
No dia do aniversário, a família preparou uma festinha para o garoto, no hospital mesmo, com direito a bolo e parabéns. “Ele levantou para cantarmos, mas não comeu, porque não conseguia”, conta. Em seguida, o jovem deitou e foi ficando quieto. Ronaldo, então, chamou a mãe de Ramon e os irmãos. “Todos puderam conversar com ele, mesmo sedado.” Foi quando a vida suspirou pela última vez em Ramon.
“É difícil chegar na época do aniversário do meu filho e ele não estar mais lá”, divide Ronaldo, um ano e três meses depois do ocorrido. “Mas eu tenho outros dois filhos e eles são minha força, presentes de Deus. Eu morro por eles. Domingo agora é Dia dos Pais e eles vão me dar parabéns, mas vai faltar um. Essas coisas doem na gente, então eu tenho de procurar força neles mesmo.”
O marceneiro acredita que os filhos não podem ver o sofrimento do pai, porque vão sofrer mais ainda pela morte de Ramon. Para isso ele tem um truque. “O único cantinho, o momento que eu tenho para chorar, desabafar, é no banheiro. Eu ligo o celular, coloco uma música e choro. Depois saio de boa. Se o olho ficar vermelho eu falo que o shampoo queimou. Invento uma desculpa e saio sorrindo.”
A cama do filho mais velho está no mesmo lugar, com os presentes que ele ganhou. “Ninguém mexe.” No entanto, o pai admite: “Eu preferia tirar, porque dói ver tudo quando vou fazer a faxina. Mas o Renan quer e, para mim, a lembrança vai ser eterna. É uma dor que só quem passa sabe como é. Não é fácil não.”
Segundo ele, Ramon foi quem mais sofreu com o abandono da mãe, que deixou a família logo no início do tratamento. Já Ronaldo dedicou tudo o que podia ao filho. Parou de trabalhar e passou a estar 24 horas ao lado dele, até para dar banho. “Quando ele ficava mal eu colocava um colchonete no chão e deitava ao lado dele com um balde. Cheguei a dormir no hospital em pé de olhos abertos”, conta.
Além disso, teve a dificuldade inicial para cuidar do lar. Uma confeiteira ficou um mês indo na casa de Ronaldo para ensiná-lo a cozinhar. Hoje, ele garante saber preparar qualquer coisa, incluindo a indispensável macarronada aos domingos. Para ele, o mais difícil e demorado é passar roupa. “Então eu decidi tirar tudo da máquina e deixar secar no cabide. Assim não amassa. Quando vai à igreja ou outro lugar a gente passa.”
Quem também deu muita força para o homem foi Cleonice. Eles se conheceram na igreja evangélica que Ronaldo frequenta alguns meses depois da separação e ela “foi a mãe que Vitória precisava naquele momento para que eu conseguisse cuidar do Ramon”. O casal pretende tornar mais sério o que até então é um namoro ainda neste ano, mas a futura noiva não sabe – ou não sabia até agora.
Mesmo que a família aumente, Ronaldo disse que a dedicação com Renan e Vitória será a mesma, senão maior. “O que fica na minha cabeça é que esse um ano e três meses que eu vivi com o Ramon eu deveria ter vivido há muito tempo”, diz. “Eu sinto um amor tão grande por meus filhos que eu quero viver todos os momentos que eu puder com eles, e que não vivi com o outro. A prioridade são meus filhos.”
***
José
Outro pai que é mãe ao mesmo tempo mora em Rafard, mas veio da Bahia há mais de 20 anos em busca de trabalho. José Fernandes de Oliveira, de 43 anos, foi abandonado pela companheira que viajou do outro estado só para ficar com ele, dizia. Ela o deixou com dois filhos pequenos, um ainda mamava no peito, e foi morar em Capivari, onde está até hoje, três anos depois.
O mais velho de José tem cinco anos. Para não ver os pequenos chorarem ao ver a mãe, o profissional de serviços gerais, que trabalha em uma usina, abriu mão até da pensão. Ele mora com os dois nos fundos de uma casa, na Rua Tuiuti, e leva uma vida pra lá de corrida em busca do pão de cada dia para sustentar sozinho a prole. Para isso, conta com a ajuda de amigos e familiares dos irmãos que também moram na cidade.
José pega o ônibus rural próximo de casa às 5h e vai sabe-se lá Deus pra onde. “Pode ser em Rafard mesmo, em Capivari ou tem dia que mandam a gente para Monte Mor.” Ele só retorna para casa às 16h e uma hora depois tem de buscar as crianças na creche. “Daí eu faço a janta, fico um pouco com eles e às 21h levo na casa da mulher que trabalha na creche. Eles dormem lá e eu durmo sozinho”, conta meio tristonho.
Com folgas uma vez por semana, este ano vai passar o Dia dos Pais em casa, com eles. “O que eu como eles comem. Onde eu vou eles vão. Não desgrudo mais. Não sei viver sem eles. No começo foi difícil, não queria aceitar a ideia de ter de cuidar dos dois sozinho. Mas os amigos ajudam, sempre tem alguém que ajuda”, conta. “E domingo vai ter churrasco na casa do meu irmão. É lá que eu vou curtir com eles.”