08/05/2015
Mãe de fé, amor e arte
Com ajuda dos filhos, a rafardense Rosimeiri Maria Vaz de Lima, de 61 anos, encontrou nos desenhos realistas a cura para enfrentar o câncer e a depressão
RAFARD – Quando a jovem rafardense Rosimeiri Maria Vaz de Lima teve o primeiro dedo de prosa com o moço que ela via sair da usina, todos os dias, durante seu horário de almoço na fábrica de costuras, não imaginou que completaria ao lado dele 41 anos de casada, muito menos que originaria três filhos tão unidos e complementares a ponto de formarem a base que sustenta a vida da artista plástica.
A administradora Luciana Soares de Lima Siebre é a primogênita da família e está prestes a alcançar a idade do romance dos pais. Católica fervorosa, a mulher alta e forte leva Deus para dentro de casa em suas orações. Gerencia a fé da família por meio do departamento da lembrança, fazendo com que não esqueçam que “tudo é possível Naquele que os fortalece”.
Apesar de a mais velha ser da vizinhança e estar sempre por perto, quem acompanhou a mãe em todas as consultas para tratar do câncer no estômago foi a mais nova: Maisa Soares de Lima, de 34 anos. A estudante de Psicologia trabalha até hoje na elaboração de estratégias amorosas, diagnosticando, prevenindo e tratando dona Meiri de possíveis desânimos e vontades de chorar.
Após meia-dúzia de análises passou a bola para o irmão, o engenheiro civil Juarez Soares de Lima, de 39 anos, que, por sua vez, viu que a saída era estruturar os pensamentos da mãe com arte. Capacete devidamente colocado, começou a projetar nela sua paixão por desenhos realistas. Ventos e mudanças de temperatura não foram suficientes para derrubar sua empreitada. O objetivo sempre foi mais forte.
“Descobri o câncer por acaso em 2010. O médico achou que meu intestino estava diferente e pediu um exame. Logo foi detectado. Meu mundo caiu”, conta uma dona Meiri de olhar apreensivo e bochechas levemente rosadas. “Mas, estava no início. Não precisou de radioterapia, quimioterapia. Era daqueles que dá para tirar na hora da colonoscopia. Como Deus é bom, né?”
A esposa do aposentado Gerinaldo Soares de Lima, de 66 anos, disse que, embora maligno, o tumor surgiu como uma sementinha deixada cair sem querer por um passarinho. A árvore, então, nasceu, mas cresceu fora do intestino. O lenhador só precisou cortar o tronco próximo ao solo para que as raízes da planta não se desenvolvessem no corpo humano.
“Ele tirou três e falou que tinha mais dois. Daí marcou a cirurgia e tirou os outros dois. Depois mandou em Piracicaba, no Cecan [Centro do Câncer Santa Casa de Piracicaba], e ela começou a fazer acompanhamento. Não precisava de nada, só tinha de refazer os exames duas vezes por ano”, explica Luciana. “Em dois anos ela foi liberada. Ano passado não foi mais e esse ano também não precisou.”
Apesar do tratamento menos complicado e indolor, no decorrer dos procedimentos, as lágrimas da depressão surgiam no rosto de dona Meiri sem pedir licença. “Eu tinha medo de morrer. Todo mundo tem. Pode falar que não, mas tem, sim. O mundo cai, o chão se abre. Pode ser quem for”, descreve. Para combater essa tristeza, Juarez resolveu ensinar à mãe tudo o que aprendera nas aulas de desenho.
“Eu chorava muito. O Juarez chegava em casa e me encontrava chorando. Ele ficava desesperado e queria arrumar alguma coisa para eu fazer, para não ficar pensando”, recorda a artista plástica. “E nessa idade eu fui aprender. Quer dizer que tem tempo para tudo, né? Na hora do desespero a gente se apega em tudo, só para não ficar pensando, só para não ficar chorando.”
Dona Meiri começou desenhando apenas mãos, depois olhos, narizes, até que se viu juntando todas as partes do corpo. “Eu falava que não ia conseguir, mas meu filho dizia que eu tinha de insistir.” Hoje, já fez mais de 30 desenhos, a maior parte deles por encomenda. Segundo o engenheiro civil, que cuida do negócio, os valores variam entre R$ 70 e R$ 120, dependendo de quantas pessoas terá o desenho.
“Eu olho em outra foto, passo o contorno em uma folha maior e vou pintando com lápis, papel higiênico e borracha”, conta. “O papel higiênico é para esfumaçar, para fazer a pele. E tem a sulfite, que é para não sujar o desenho com o grafite”, explica a mulher, apontando os traços de Juarez entre os netos (filhos de Luciana) presos à mesinha de trabalho, no canto esquerdo da cozinha bagunçada.
“Quando eu desenho não penso em nada. Passa a hora e a gente nem percebe. Se deixar eu fico o dia inteiro.” Para enxergar melhor os detalhes, usa um notebook, no qual é possível ampliar as fotografias, que também são impressas no mesmo tamanho em que os desenhos ficarão. Algo semelhante a uma folha A3. O pacote entregue ao cliente inclui ainda um vídeo gravado pela própria artista.
“Eu mando o desenho em um envelope com um CD. Todo mundo recebe um vídeo comigo desenhando. O Jú que me ensinou: eu coloco a câmera aqui no alto, o tablet, e vai filmando. Depois é só transferir para o computador e gravar com uma música que a pessoa goste.” O suporte de madeira onde o aparelho é acoplado foi carinhosamente desenvolvido por seu Gerinaldo.
Dons
Antes de descobrir a doença, em 2008, Rosimeiri também teve aulas de pintura óleo sobre tela com uma professora de Capivari, nas proximidades da Paróquia São João Batista. Disse que é porque já vivia quietinha desde aquela época, então os filhos a levavam para fazer atividades diferentes, sair um pouco. Os quadros, ela doa todos. A residência é repleta de exemplares sem moldura.
Mais atrás, a caçula de dez irmãos, nascida no Coqueiro e estudada no Grellet, “trabalhou com um pouco de tudo”: fábrica de bolachas, padaria, fábrica de costura. Já em casa para cuidar dos filhos, aprendeu a mexer com cabelos, fez unha por muitos anos e costurou roupas infantis. “Montei até uma oficininha.” Em 2006, parou tudo e começou a olhar o primeiro neto, Israel, para a filha ir labutar.
“Era difícil, porque a gente quer as coisas. Só o salário de usina não dava para nada. Quando os filhos são pequenos, a renda ajuda. Mas, depois que crescem é difícil. Tem de estudar, tem roupa”, justifica. “Então a gente trabalha para eles terem uma vida um pouquinho melhor. No nosso tempo, do Cruzeiro, era ainda mais difícil. Você via uma coisa cedo, quando ia comprar à tarde já tinha subido e o dinheiro não dava.”
Hepatite
Cinco anos depois do câncer, aos 61 anos, a mãe de Luciana, Juarez e Maisa passou mal e precisou ser levada às pressas ao hospital. Estava desde novembro sem conseguir comer direito, com náuseas e dores no estômago, mas a situação se agravou naquela noite. A hepatite medicamentosa devido ao uso prolongado do remédio para depressão estava deixando a pele e as unhas de dona Meiri cada vez mais esverdeadas.
Além de tirar o remédio, ficou proibida de sair da cama e só podia comer alimentos bem leves e sem gordura. “Eu passava o meu dia com um pedaço de melão. Era a única coisa que eu conseguia comer, porque tinha água, e melancia. Depois não consegui mais. Eu só chupava a água sem engolir. Fui emagrecendo, fazendo exames, até que descobriram que era hepatite”, recorda a mulher oito quilos mais magra.
No começo da doença, já na cama, os filhos inventaram que ela deveria fazer tricô e crochê para se distrair. “Minha mãe nunca tinha feito crochê. Mas, nós compramos a linha e tudo o que a gente falava para ela fazer para ocupar a cabeça ela foi fazendo: vestido, touquinha, boné, boina, tapete. Tudo o que nós falávamos para ela olhar no YouTube e aprender ela foi fazendo.”
A ideia resultou em uma porção de peças coloridas e ricas em detalhes, dignas de uma exímia costureira. Entretanto, em vez de melhorar, o quadro se agravava. “Foi tudo apagando, até que eu fiquei cega. Eu achava que já era”, recorda dona Meiri. “Ela ficou quietinha. Não contou para ninguém que não estava mais enxergando”, acrescenta Luciana. Mas os filhos percebiam que tinha algo errado.
Um dia, no Grupo de Oração, Luciana se ajoelhou, rezou o terço e disse que começou a conversar com Deus. “Contei a Ele que minha mãe estava morrendo, que ela ia morrer em minhas mãos, e pedi ajuda”, relata com os olhos marejados. “Então ele mostrou caldo de feijão, batata amassada e [para dar o sabor] um prego enferrujado. E foi isso que eu fiz. E ela comeu e não vomitou”, completa, quase em prantos.
Depois, o Deus misericordioso da filha da artista plástica mostrou também a vagem e o suco de uva, originando uma dieta balanceada que é seguida até hoje pela família. Aos poucos, dona Meiri foi recuperando a visão e a cor da pele. O diabetes, descoberto na mesma época, também está controlado.
“A gente pensa bastante nos filhos. É um egoísmo que a gente não quer deixar eles para trás. É o desespero. E depois a gente pensa que vai ficar sofrendo e dando trabalho para todo mundo. Porque todo mundo fica envolvido. É muito difícil. Só quem tem e teve pode falar como é”, descreve a mulher cujo cabelo não é pintado há algum tempo. “Mas, agora estou bem, feliz e realizada. Agora é vida nova”, diz confiante.
Família
De todas essas tempestades, Rosimeiri saiu mais artista. Não pensa em dinheiro, apenas em fazer as pessoas felizes, assim como ela é ao lado dos filhos e do marido. “Eu gosto de desenhar. É gratificante ver a pessoa ganhar o desenho e se sentir feliz. Eu fico mais feliz ainda pela pessoa. Para mim foi um modo de sair da depressão e enfrentar a vida de novo.”
Por outro lado, segundo ela, o desenho também ajuda a controlar a falta do medicamento antidepressivo. “Minhas mãos tremem muito pela falta do remédio. Quando eu desenho, elas ficam mais firmes.” Para dona Meiri, o segredo para doenças como as que ela teve é sempre buscar coisas novas, para que a mente fique limpa, e seguir em frente, viver um dia melhor do que o outro.
“A gente tem de aproveitar a vida, cada pouquinho dela. Coisas que eu não observava antes, agora eu olho e são tão lindas: a chuva, o sol, as nuvens. A vida é muito boa.” Embora se autodefina uma mulher brava, dona Meiri admitiu que só não aprendeu ainda a ser menos chorona. Chora de alegria, de tristeza, pelos outros, por pessoas doentes; chora junto se alguém estiver triste. “Mas, eu sou bravona, sim.”
Hoje, a dona Meiri mãe, que encontrou o verdadeiro remédio para sua dificuldade fazendo retratos de outras famílias, afirma que não teria descoberto seus dons sem a ajuda dos filhos, que nunca desistiram dela. Segundo a artista plástica, nenhuma doença é tão terrível e nenhum obstáculo é impossível de ser ultrapassado se houver estrutura familiar, união e amor.
“Meus filhos são tudo. Eles são minha vida, meu mundo. Eu amo muito eles. A Maisa é um doce, o Juarez então… e a Lú é essa meninona que está comigo o dia inteiro todo dia. Deus me deu tudo: uma família maravilhosa, meu marido, minha casa. Eu tenho tudo. Só tenho de aprender a ser menos egoísta, porque tenho tudo para ser feliz. Não preciso de mais nada.”