29/04/2017
Guedes de Oliveira – Um Escanfandrista das Letras
Uma amizade através de Rodrigues de Abreu
Há um poeta paulista que me agrada e de quem, infelizmente, pouco se fala, à exceção de reduzido número de especialistas da Literatura Brasileira de inícios do século passado: é Rodrigues de Abreu, natural de Capivari, a bela cidade do interior de São Paulo com mais de cinquenta mil habitantes, por antonomásia a “cidade dos poetas”, pátria, também, do hoje clássico Amadeu Amaral. Ali nasceu, igualmente, Léo Vaz, o plasmador de O Professor Jeremias, das mais belas obras da narrativa pré-modernista. Precisava de mais dados sobre o arquidoloroso cantor de A Sala dos Passos Perdidos, de 1924, e de Casa Destelhada, de 1927, belos e tocantes livros de poemas intimistas do nosso Simbolismo tardio. Com exceção do que lera nas prestimosas antologias de mestre Silveira Bueno, nada mais achei. Muitas histórias da nossa literatura silenciam de modo injusto sobre ele. Foi desses poetas que, por motivos que se desconhecem, ficam presos em cercados que a geografia impiedosamente demarca, como existem tantos por este Brasil a fora. Por sinal, o interior paulista tem dado grandes nomes às nossas Letras, à imitação de Minas, quando não os prende, de modo inexorável e cruel, nos seus limitados cercados. Vali-me, então, dos trabalhos de José Roberto Guedes de Oliveira, quem publicou cartas e poemas inéditos, artigos e antologias de Rodrigues de Abreu, trabalhos de buscas pacientes, reiteradas e demoradas. O doloroso poeta capivariano aproximou-nos ao historiador e a mim, e pude conhecer um investigador dos mais sérios e abalizados, desses que se devotam por anos a determinado tipo de investigação e não na abandonam a não ser quando quase todas as lacunas histórico-biobliográficas são desvendadas. Pude melhor conhecer a vida e obra do poeta de Casa Destelhada graças a Guedes de Oliveira. Em certo ponto, confesso-o, ore rotondo, sou devedor desse investigador que, para não fugir à enumeração dos bons filhos da terra cujo nome tupi, segundo o erudito tupinólogo Padre Lemos Barbosa, significa “rio das capivaras” (Este belo e grande mamífero roedor, que ainda cheguei a ver nos vastos e frios Campos Gerais paranaenses, cientificamente denominado de hydrochœrus hydrochæris, deveria ser abundante pela região…), ali nasceu em 12 de dezembro de 1944, mas grande parte de sua operosa existência, tem-na passado fora da cidade dos seus enlevos, que jamais esquece e que homenageia sempre que tem oportunidade.
Investigação e Generosidade
Li, faz muito tempo, em David Daiches , que não se devem escrever livros sobre livros, que é mais importante lê-los e discuti-los, ajudando a formar com este procedimento a curiosidade em quem se discute a respeito do livro que nos desperta o interesse. Discordo deste humanista a quem tanto admiro. Sim, é preciso escrever sobre livros, livros sobre livros. É investigando sobre um autor que chegamos a conhecer-lhe o cerne da obra e mais profundamente o seu pensamento e acredito que não se podem separar por inteiro a obra do autor e do contexto, sem que isto queira dizer que venhamos a adotar o biografismo superficial e canhestro como explicação crítica da obra. Acredito que esta é a posição de Guedes de Oliveira, porquanto tem dedicado muito do seu tempo em explicar livros e obras alheias, em uma devoção de crítico que causa admiração e respeito. Poderia dedicar todo esse tempo, em dias como os que vivemos, em que cada segundo é precioso para o nosso conforto, lazer, para as nossas mais íntimas relações pessoais, saúde e a própria sobrevivência, para construir a própria obra original. Quantas páginas de bons escritores ele já salvou e difundiu! De Rodrigues de Abreu, então, nem se fala, e posso mesmo dizer, sem receio de exagerar, que, graças aos seus esforços e às suas muitas idas e vindas repetidas, por anos e anos, aos arquivos da sua cidade, o poeta deste sombrio Casa Destelhada ficou mais conhecido e a sua obra mais apreciada e difundida, e desvendados os tristes revezes de sua curta existência. Ninguém poderá mais escrever um ensaio ou sequer uma crônica, um acadêmico não poderá sustentar uma dissertação de Mestrado ou defender uma tese de Doutorado sem valer-se dos trabalhos desse generoso capivariano sobre quem escrevo agora. Mergulhou fundo na sua vida e obra de Rodrigues de Abreu, e o resultado desse escafandrismo literário é um tanto semelhante, observadas as distintas proporções, ao que realizou, em Portugal, o escritor Alberto Pimentel para com seu ídolo e mestre literário, o romancista eterno de O Bem e o Mal, O Retrato de Ricardo, Livro de Consolação e outros romances que enriquecem a nossa Língua. Conseguiu mostrar Rodrigues de Abreu inteiro: as suas curiosidades literárias, as suas amizades, as suas leituras prediletas, a saúde delicada, a sua pobreza proclamada de modo cândido e quase sem pejo, apontou os seus amigos mais achegados, discutiu o falhanço do seu mais persistente caso de amor. Ninguém até hoje fez mais pelo poeta do que Guedes de Oliveira. E as obras se sucedem: Rodrigues de Abreu e Suas Cartas de Amor, de 1994; Rodrigues de Abreu – in memoriam, de 1997; e Meu Caro Rodrigues de Abreu, de 2003. A dedicação ao poeta é antiga e já em 1978, sagrou-se vencedor do 1º. Concurso sobre a Vida e Obra de Rodrigues de Abreu, da municipalidade de Capivari.
Para sempre enamorado de sua terra, “da sua pátria”, como diziam os clássicos portugueses com referência à aldeia ou cidade onde alguém nasceu, Guedes de Oliveira, foi o fundador de várias instituições que visam a preservar a história e as tradições capivarianas, como o Movimento Capivari Solidário, graças ao qual em data recente se publicou o livro Léo Vaz. O Cético e Sorridente Caipira de Capivari, sob orientação e redação de Virgínia Bastos de Mattos. Não ficam aí a sua inquietação e desvelo de investigador. Quis, também, homenagear a própria terra desde a sua fundação, ainda em meados do século XIX, escrevendo dois livros sobre Capivari: em 1992, lançou Capivari em Duas Décadas (1900 a 1921) e, em 2012, Capivari – 180 Anos.
É de causar admiração quando se pensa que este escritor dinâmico, formado em Direito, com especialização em várias áreas e especialidades jurídicas, como Direito Ambiental, de introdução faz poucos anos nos currículos acadêmicos, mas hoje em dia áreas tão em evidência pela sua extensão e aplicabilidade sociais, participando, ainda, de conferências e palestras, na cidade onde vive, Indaiatuba, em Capivari, São Paulo, Campos do Jordão, Bauru, e até em distantes cidades do Norte e Nordeste, como Belém, Viçosa, Marechal Deodoro e Maceió, estas últimas três belas cidades das Alagoas, lugares que despontam hoje como paraísos turísticos dos mais procurados pelos sulinos.
Antologista, Guedes de Oliveira selecionou e coligiu crônicas e poemas de Rodrigues de Abreu, J. Prata e Homero Dantas (pseudônimo literário de Eduardo Maluf), ao mesmo tempo em que a sua eterna inquietação o leva a ajudar a fundar a Academia Indaiatubana de Letras, da qual é dos mais destacados membros. Lamentavelmente, o referido sodalício se encontra desativado, por motivos vários.
Cronista dos bons, o escritor escreve sobre os mais variados assuntos, como Rubem Braga, que fazia da notícia mais simples do mundo, mais casual, mais corriqueira uma página memorável vazada sempre em estilo fluente e agradável. Está longe das crônicas irritantemente pessoais e chochas de alguns cronistas que pensam não precisar a crônica de um certo requinte literário, generosidade, invenção (e chamo a atenção de quem por ventura me ler, que dou aqui ao vocábulo o seu mais genuíno significado etimológico, de achado!) e desprendimento. Humberto de Campos cansava com o seu intimismo exacerbado, a falsa humildade, a vontade de santificar-se pelo sofrimento aos olhos dos leitores. Eram belas crônicas, não podemos negar, pois o autor de Destinos e Sombras que Sofrem, era efetivamente um brilhante estilista, mas desnudava-se demais e isto termina cansando. Prefiro as de Paulo Mendes Campos, mais letrado e mais requintado, e as de Rubem Braga. Sem a poesia deste e o requinte daquele, Guedes de Oliveira, porém, escreve crônicas de leitura agradável. Seus artigos literários são algumas vezes inovadores, como os que escreveu sobre Guimarães Rosa e a sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas. Um dos mais bem logrados artigos foi o que dedicou às mulheres na obra do magno romancista que, acredito – ainda que eu não seja um expert na obra rosiana -, é dos primeiros enfocando o tema, por sinal candente e de sumo interesse.
Anch´io so´ poeta… e fecho
Admirador de Whitman e difusor entusiasta entre os seus leitores, publicou, em 2009, Walt Whitman – um Poeta Brilhante. Promete-nos outra obra sobre o cantor de Leaves of Grass, que parece ser o seu poeta estrangeiro preferido. Sente o vigor e a beleza dos poemas whitmanianos, o que não é de estranhar, pois Guedes de Oliveira é, também, um poeta e muitos de seus poemas estão espalhados em antologias, folhas literárias e jornais da região. Li alguns desses chamados comumente de poemas de ocasião e por eles pude medir a sensibilidade poética do nosso escafandrista. Até nesta parte da sua produção literária, a nota constante na vida e obra de Guedes de Oliveira: a generosidade, a solidariedade, o prazer da amizade, que ele cultiva à exaustão e costuma estendê-la a outros amigos o conhecimento dos seus amigos. Valho-me aqui de Cícero, aquele que dizia as mais belas e profundas coisas na época dos romanos. Pulcro e clássico, denso e profundo, no seu A Amizade escreveu com letras de ouro esta sentença que merece ser repetida: “Antes do mais, tenho para mim que amizade só pode existir entre indivíduos bons” . Pensei neste ensinamento ciceroniano ao tomar conhecimento dos esforços de Guedes de Oliveira em prol da memória de tanta gente que ele um dia conheceu e com a qual um dia privou. Talvez umas poucas dessas pessoas não tivessem a importância que o escritor lhes quis passar, mas nem por isso as deixou de lado. Enalteceu-as, exaltou-as, esforçou-se para que a sua memória não desaparecesse no mais completo abandono e anonimato. Trabalho de generosidade.
E como citei Walt Whitman acima, poeta da simpatia do escritor e também de quem rabisca estas linhas, ponho fecho citando um verso que diz muito, extraído das Leaves of Grass , no seu poema When I Read the Book. O poeta americano escreveu e perguntou-se:
When I read the book, the biography famous,
And it is this then (said I) what the author calls a
/ man´s life?
O que podemos chamar de vida de um homem? Amizade? Bondade? Generosidade? Talento? Há mil maneiras de crismar um homem, há mil modalidades de avaliar-se um escritor.
Pensemos nisto.
Florianópolis, 04 de setembro de 2016.