“Gardênia”, era como assinava D. Paulina Guidetti Armelin (1904-1992), as suas crônicas sociais, suas poesias, seus artigos e reflexões, pelos jornais de Capivari, em tempos que não vão distantes. Casada com o insigne médico Dr. Sebastião Armelin, batalhou exaustivamente pelas coisas capivarianas, mas pouco reconhecida desse seu desprendimento.
Corrido 120 anos de seu nascimento e 60 anos da publicação de sua crônica “Ao nosso Ipê”, reproduzimos, aqui, esta peça maravilhosa e jamais descrita de tal forma brilhante.
“Tido e havido como árvore ornamental de maior brasilidade e beleza, o nosso ipê amarelo, teve como faz todos os anos, a sua quinzena de glória. Vemô-lo na praça Rodrigues de Abreu, ali mesmo postado à entrada do desaparecido mercado, numa tarde morna, quando o sol se despedia da terra cedendo lugar às primeiras sombras da noite, gargalhando como o espoucar de mil rojões altivo, altivo, deslumbrante, recortando o azul esmaecido do céu com sua dourada e gritante floração. Dizem os botânicos que em toda árvore palpita a doida ambição de invadir e conquistar a terra inteira na ânsia de se reproduzir. Destacadamente, o ipê tomado de um delírio amoroso entre agosto e setembro algumas vezes mais tarde despe-se inteiramente de sua folhagem e como um deus pagão touca-se de flores. Onde havia uma folha surgem duas, quatro, cinco flores. E nessa orgia apoteótica dourada nesse notável espetáculo que é para os olhos dos bons apreciadores uma epopeia a mais linda festa da natureza brasileira, o ipê se reveste de surpreendente beleza, pondo nas praças, no fundo dos bosques, no renque de uma alameda, no recanto dum jardim, na tela verde das florestas gigantescas pinceladas de flores. Infelizmente as bodas duram pouco e ao fim de uma ou duas semanas o vento soprando desapiedadamente açoita-o, flagela-o derrubando as lindas flores do seu manto nupcial. Depois da flagelação como num tapete amarelo de rara suavidade estendido ao seu redor, formado pelas flores caídas a árvore, como que abatida, entristecida com os galhos despidos de sua maravilhosa pompa semanal projeta sua sombra nas suas próprias cores, lamentando talvez a transitoriedade de sua triunfal beleza. O ipê amarelo veio ao mundo quase que para fins estéticos e no tempo em que nas matas as outras e muitas árvores perdem as suas folhagens, então o nosso perfilado de hoje para gáudio e consolo do mundo vegetal, estourando sua copa em flores amarelas como uma taça de champanhe, pronuncia com sua garridice e dourada floração a chegada das primeiras chuvas da primavera. Para viver apenas uma ou duas semanas as culminâncias de uma glória passageira que nenhuma árvore lhe pode disputar, porque para isso precisaria nascer ipê, pois só sendo ipê teria a faculdade e o privilégio de se cobrir com o ouro de suas flores o ipê da praça Rodrigues de Abreu passa um ano despercebido como uma árvore qualquer, confundindo-se com outras perdido no anonimato da praça. Isto faz-nos pensar com ternura repassada de pena na muda renúncia que a mãe natureza impõe aos invulgares aos melhores espécimes da flora patrícia e no imenso e incalculável tesouro que a prodigiosa imaginação do Criador do mundo vegetal nos legou”.