Entediante, é assim que aparentemente se definia meu primeiro dia na biblioteca municipal de Capivari. Fundada em (data de fundação) não tinha muitos livros raros nem ao menos interessantes. Mas havia nela uma infinidade deles incrivelmente inúteis, como coleções completas de romances tipo “Sabrina”, onde a única virtude do autor era a capacidade de contar em 25 livros a mesma história “água com açúcar” com palavras diferentes. E eu, como havia me comprometido, estava organizando todos os livros da biblioteca por seus registros em suas devidas prateleiras. Foi neste atarefado primeiro dia de emprego que eu, na minha função de máquina, encontrei nos registros do antigo livro de notas um estranho incidente… alguém havia errado ao catalogar o único manuscrito da biblioteca, pois a data registro era anterior a própria fundação da mesma.
De início achei que era uma brincadeira de mau gosto que nunca havia sido conferida e por isso permanecia ali como marca do desleixo de meus antecessores de serviço; mas quando fui verificar o manuscrito de título “Confissões silenciosas” encontrei-o lá intacto, entre toda aquela balburdia, era um dos únicos livros em seu devido lugar, estante 24 coluna D.
Abri o livro que não continha prefácio, orelha ou nota, de capa de couro velho e trincado, com folhas amareladas puídas e escrito com tinta vermelha oxidada.
Sentei ali no chão gelado e iniciei a leitura entre as estantes, escolhendo um conto a esmo entre os vários contidos do livro.
O porteiro
Elcio nunca fez concurso para seu emprego de zelador na escola Padre Fabiano, como tudo na sua vida, o emprego, que lhe rendia o ganha pão há mais de 45 anos, também foi conseguido por acaso.
O emprego era medíocre, ganhava-se mal e ouvia-se muito desaforo das crianças travessas e dos jovens transviados. Mesmo assim Elcio não se abalava… já podia ter pedido aposentadoria, mas não o fez, talvez pela merenda que comia junto com os alunos, ou pela rotina de velho, mantinha-se no emprego!
Elcio cuidava da parte vespertina a noite, era o encarregado geral e servia para tudo. Pacato e resignado seguia sempre seu ritual de fechar as classes às 11h30min, certificar-se de que não havia mais ninguém nos corredores e, por fim, trancava a porta central que dava para rua; acendendo seu cigarro, sentando na escada do prédio e balbuciando uma reza contida, segurando os joelhos que tremiam sempre a esta hora, esperava as 12 badaladas do sino da igreja próxima.
Na sexta-feira da penúltima semana de aula, Jonatas havia esquecido seu boné de sábado na última classe do corredor, e ele tinha certeza disto; como também tinha certeza de que o velho não abria exceções quanto a deixar que alunos entrassem na escola depois do final da aula noturna.
Quando o velho viu um dos piores alunos da escola vindo em sua direção, interrompeu seu ritual sagrado e se levantou em pose de galo de briga rodando o molho de chave nos dedos.
Jonatas tomou a chave das mãos de Elcio e passou empurrando o velho com um coice de mula, bem peculiar à sua personalidade de asno, metendo-se adentro do colégio. Reagindo à animalidade do jovem, Elcio respondeu com o ímpeto de um cachorro de rua que agarra esbravejante o calcanhar de quem o ofende. Mas o jovem que não se comovia com os apelos de Elcio, menos ainda se importava com seus tímidos puxões na barra das calças. E assim adentrou o colégio arrastando o desesperado velhinho que trotava nos degraus da escada de entrada!
Abriu a porta rapidamente, dentre as várias chaves do molho pegou a certa na primeira tentativa. Desvencilhou-se de Elcio e seguiu corredor adentro para pegar seu boné.
– Volte, volte!!!Gritou o velho desesperado, soltando o corpo no chão quase simultaneamente aos sinos começarem a tocar.
Jonatas andou rápido enquanto os sinos tocavam, entrou na sala, pegou o boné e saiu.
Estava quase passando pelo velho atônito, parado feito estátua no meio do corredor, quando viu vagarosamente as portas se abrirem, uma a uma e delas saindo crianças de formas vultuosas e luminescentes, levemente azuladas pela névoa que saía das salas.
Corra, disse o velho para Jonatas que, por espanto ou por estupidez de espírito, não se moveu.
A cena que passava nos olhos do jovem já era tão aterrorizante que mal fez diferença quando de uma das salas saiu um senhor Magrelo de óculos enormes e calças suspensas até o peito, intimando Elcio com uma varinha de marmelo na mão dizendo:
– Não, não, não, não… você está descumprindo nosso pacto senhor Elcio.
– Eu tentei impedi-lo! Disse o velho com voz choramingante.
– Tentar não é o bastante senhor Elcio. Retrucou o fantasma.
Jonatas correu sem olhar para trás enquanto os dois velhos discutiam… e correu mais umas quatro quadras até que suas pernas não mais conseguiram competir com seu pavor.
Seguiu trôpego até a sua casa e desabou num sono desmaiado.
No dia seguinte todos da escola estavam espantados, uns pela noticia da morte do velho Elcio… outros pela inusitada contratação de Jonatas como porteiro. Um porteiro resignado e pacato que fechava sempre a escola às 11h30min, sentava na escada e rezava sussurrante até o badalar dos sinos da meia noite.
Por Gabriel Góes, professor de Desenho, Teatro e Poéticas Visuais