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Fantasmagorias Capivarianas – A cheia do Ribeirão

A segunda semana na biblioteca foi mais tranquila. Abri as janelas logo cedo para que o sol e o ar puro tocassem as prateleiras e por toda manhã, enquanto organizava eu conferia os últimos livros das estantes, não veio ninguém. A tarde em compensação o museu virou creche, nunca tinha visto tanta criança junta e para amenizar meu desespero contido de recepcionista estático, entrou por último uma professora engomada com cara de viúva de padre, fazendo com que todos se sentassem quietos e organizados, sentados e alinhados nas longas mesas a distância de um braço um do outro. Me senti um incompetente, se ela fazia isto com crianças o que não faria com livros.

Sentei na portaria e abri o incatalogável manuscrito de contos, que encontrei semana passada, sobre o balcão… Folhei novamente a esmo parando em num conto de nome…

A cheia do Ribeirão

– Ele é doidinho, não pode pôr ele na escola… Fala sozinho o tempo todo, coitado.

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– Será que é doença, ou caso de padre?

– Acho que os dois!

– Então trate de afastar as crianças de perto dele.

Na pequena casa de madeira, um garoto ouvia sozinho um grito tão intenso como um trovão explodindo num quarto fechado. Pálido, abriu seus olhos azuis tão claros e puros que ofuscavam a serenidade do céu.

– Quem me chama? Onde você está?

– Aqui fora, rápido, rápido venha! A voz falava agora em som mais ameno e audível.

Olhando pela janelinha do quarto, viu apenas as vacas rodeando a casa.

– Aqui, aqui, aqui – a voz ecoava de todos os lados do matagal que cruzava o ribeirão, próximo à Chácara Clemente.

Tomás era uma criança introvertida, filho de caseiros de uma chácara, pobre e sem amigos. Vozes de todo tipo compunham o universo particular da criança solitária. Às vezes, quando ele chorava por não poder brincar com as outras crianças, as vozes apareciam, como a de Laciara, uma linda menina de cabelos brancos e olhos negros, outras vezes, como Iraputã e Irati, dois jovens gêmeos tagarelas. Mas na maioria das vezes, ele brincava com Piatã, a primeira das vozes a aparecer, ele era mais velho, aparentava seus vinte e poucos anos, de pele vermelha e tinta na cara… Piatã vinha para lhe contar histórias e brincar próximo ao ribeirão, que neste trecho mais parecia fio de água.

Era a voz de Piatã que ecoava pelo matagal. Havia mais do que o tom humano em sua voz desta vez, o som ondulante era convidativo, quase que um transe para o menino. Ele saiu do quarto pela janela e foi em direção ao convite; estranhamente, as vacas abriram espaço para ele, formando um corredor silencioso que o garoto não percebeu.

Ao passo que ia chegando perto das árvores, foi sendo tomado pelos ecos. A criança nem desviou o olhar, seguiu feito um animal puxado pelo cabresto, de andar trôpego e acelerado, desvendando a curiosidade inquieta sobre o que havia nas veias do matagal que sua mãe tanto abominava.

Começou a chover forte sem que houvesse nenhuma nuvem no céu.

Viu árvores, arbustos, troncos de mil formas, as quedas d’água esculpindo pedras redondas. Andou sem fome ou sede a passos tortos e só se cansou quando a água do rio tornou-se grossa e larga, onde a voz parou de chamá-lo.

A chuva fazia-se forte, explodindo na face do rio, rasgando a luminosa tarde ensolarada, vertendo do céu claro aos montes, num espetáculo surreal que, mesmo na imaginação de uma criança, só competia com o que ela via do outro lado da margem. Cerrando os olhos, para ver entre as gotas da chuvarada, do outro lado do rio via o imenso arco-íris circundando as ocas de Sapé e, junto delas, um mundaréu de crianças brincando e chamando Tomás. O garoto nem mesmo titubeou em frente à correnteza da margem que se alargava cada vez mais, pulou para dentro d’água e quase se afogou várias vezes antes de chegar ao outro lado do rio. A chuva parou.
Tomas pintou o rosto com as crianças, cantou e dançou com os tambores, e ficou por lá sem nunca mais voltar.
No mesmo dia, seu pai foi procurá-lo. Mas a chuva havia parado… E quando passou pelo mesmo lugar onde as ocas estavam, já não havia nada além da imensidão horizontal de pasto úmido.

Alguns anos depois, quando lotearam a chácara Clemente, encontraram lá várias urnas mortuárias indígenas… Mas isto é uma outra história.

As crianças saíram do museu quase na hora de fechar.

Todas em fila, quase que em marcha. Nenhum sussurro.

Logo atrás delas, vinha a professora ereta e magra como viga de madeira seca.

O tempo passou rápido enquanto eu lia, e já de noite, com a chuva pendendo do céu, eu corria para fechar a janela e me molhar menos no caminho de volta a minha casa. Antes que eu fechasse todas as janelas, ouvi os estralos de granizos crepitarem no telhado.

Fechei todo o museu e sentei na escada.

Foi quando ouvi um barulho de metal caindo, vindo de baixo de mim. Olhei embaixo da escada e reparei pela primeira vez que lá havia um alçapão de madeira.

Puxei, empurrei e nada, estava totalmente emperrado.

Sem ter mais o que fazer, tomei novamente o manuscrito em minhas mãos e li mais um conto.

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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