20/02/2015
Coração da Abaçaí vai pulsar em Rafard, diz diretor cultural
Toninho Macedo falou sobre os projetos que a organização social tem para o recém-formado Quadrante Caipira, cuja sede será o casarão de Tarsila, na Fazenda São Bernardo
RAFARD – A Abaçaí Cultura e Arte é uma organização social sem fins lucrativos, cujo objetivo é desenvolver programas com foco no melhor aproveitamento da cultura popular. Música, dança, teatro, artesanato, culinária, manifestações votivas. Tudo é abraçado pela entidade, que no próximo mês completará 42 anos de atuação em todo o estado, incluindo, desde dezembro, Rafard. “Aqui, a gente vai fazer pulsar o coração da Abaçaí”, afirma o diretor cultural, Toninho Macedo.
Recentemente, a instituição recebeu em doação 31 hectares de terra da Radar, onde está o casarão em que nasceu (em 1886) e viveu parte da infância a pintora modernista Tarsila do Amaral e seu entorno, na Fazenda São Bernardo, patrimônio tombado desde 2011. A iniciativa inédita da empresa do Grupo Cosan vai funcionar como uma parceria, segundo o responsável pela divisão de sustentabilidade da companhia, André del Gaudio. “Eles vão fazer o projeto e a Radar sempre apoiará.”
“Está vindo para cá um braço da Abaçaí que não tem sido cuidado nos últimos anos, que é o de ação cultural, nossa razão de ser. Nós não podemos perder nosso perfil, senão nos perdemos”, diz Macedo. Embora independente, a organização social também mantém contratos de gestão com a Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, para a realização dos programas Revelando São Paulo, Mapa Cultural Paulista, Litoral em Cena e cinco festivais de música espalhados pelo interior do estado.
“O dinheiro que vem do governo tem de ser usado no que foi determinado pelo contrato. A gente tem de cumprir um plano de metas”, explica Paulo Cauhy Jr, supervisor de articulação e participação da Abaçaí. “Individualmente, temos projetos na Lei Rouanet [Lei Federal de Incentivo à Cultura], inclusive que virão para cá: de restauro, ação cultural. A gente também vai atrás de empresas interessadas em patrocinar os projetos, que têm início, meio e fim.”
Para daqui três a cinco anos, Macedo prevê transformar a Fazenda São Bernardo, com sede no casarão, em um polo cultural e artístico, com cursos de formação continuada. Enquanto isso, “a intenção é realizar uma atividade por mês, no mínimo. Porque a parte formativa será mais complexa, exige a pessoa aqui constantemente”, conta Cauhy Jr. Leia trechos da entrevista com Toninho Macedo, sobre o mais novo centro de forças da Abaçaí na região:
Jornal O Semanário Regional: Como surgiu a ideia de vir para Rafard?
Toninho Macedo: É fácil saber, conhecer, falar de Tietê, Porto Feliz, Piracicaba, Sorocaba, até Capivari. Mas Rafard, a gente toma um susto quando ouve falar pela primeira vez. De onde veio esse nome? Quem o inventou? Eu fiz Letras em Neolatinas e, claro, me enveredei no domínio das artes. Quando a gente ouve falar de Tarsila e Capivari, a gente faz uma ponte. Com Rafard, não.
Recebemos uma Comissão que estava fazendo levantamentos para montar uma proposta de ocupação. Eles tinham uma proposta muito elitista e eu disse que havia um equívoco. “A gente vai para uma região da cultura caipira, uma cultura regional, que inspirou Tarsila e os modernistas, uma região em que exorbitam os divinos, o batuque, o cururu, e vocês estão indo com uma proposta que não tem nada a ver com a região.”
Mas foi uma consultoria que eu dei. Isso chegou à Radar, que não gostou muito da ideia. E o presidente do conselho da Abaçaí mantinha relações com eles. Numa reunião deles, o presidente da empresa, Colin Butterfield, disse que gostaria de conhecer alguma proposta para a fazenda. Aí nós apresentamos a “Luz de Pirilampos”, que é o nome desse projeto.
O Semanário: Por que “Luz de Pirilampos”?
Macedo: Porque nós acreditamos que as crianças que estão aqui em volta, que vêm para cá, são uma beleza, cada um tem sua luz. Como cada pirilampo, não tem cidadão que não tenha sua luz, suas ideias, todos podem criar. E também era uma forma de a gente escapulir dessas discussões familiares.
Aí nós fomos a uma reunião apresentar o projeto. Tínhamos preparado tudo, era uma reunião com executivos, que tinha de durar dez minutos. E essa pessoa da Radar é uma pessoa que enxerga longe. Então, nós falamos sobre o conceito de vórtice que a gente aplica. Quer dizer, Rafard passa a ser um vórtice da região, um centro de forças. Daí a reunião não durou dez minutos, durou duas horas e meia.
Depois de uma hora ele disse: “nós queremos doar a fazenda. Vocês querem recebê-la?” Ele explicou que era um bem tombado, que o papel deles é produzir açúcar e tudo mais, gerenciar terras, e que eles acreditavam que nós poderíamos cuidar daqui. Eu tomei um susto, falei que precisávamos de um tempo para pensar. Mas aí dissemos sim e começamos a construir essa caminhada, que não é fácil.
Assusta transitar num espaço com tantos bens tombados, a responsabilidade legal que isso tem. É um bem precioso para São Paulo. A maioria das casas foi tombada, e o desenho passa exatamente circundando esses bens. Fora isso, é um contínuo de verde tão importante para o mundo, e para a região nem se fala. Quando olhamos por cima vemos os veios de árvores preservados que temos que proteger, além dos anexos, que são as chamadas áreas de proteção ambiental (APAs).
O Semanário: E o que acontecerá com os funcionários da Raízen que vivem na colônia?
Macedo: Os funcionários da Raízen que estão aqui dentro, quando nós tomamos o primeiro contato, nos assustaram. Porque alguns estão aqui há muito tempo. Outros entram e saem e eu acho que as pessoas nem ficam sabendo. E isso foi uma coisa que antes de ter pisado aqui a gente não tinha entendido muito bem.
Se Joãozinho – que é funcionário da Raízen e tem uma “moradia obrigatória” – sair amanhã da empresa, ele terá de deixar a casa. E esse era o grande desafio em Rafard. Mas eu penso que com a Fazenda Itapeva isso está sendo resolvido, porque cada um deles vai poder ter um lote, vai poder financiar. Isso foi uma saída muito inteligente, num ponto que é significante para a região, pois as três cidades nasceram lá.
Nesse momento, não nos interessa saber se os moradores vão sair já ou daqui um, três anos. Nos interessa começar a conversar com eles, como temos feito. As crianças entram aqui, colocam a mão na massa, ficam felizes em saber que podem ajudar a colocar a cadeira no lugar, podem conversar. Elas já estão criando laços. E laços a gente não corta assim.
Essas crianças podem ser as primeiras que vão começar a ter contato com as práticas artísticas, com a formação. E não só elas. Descobrimos que aqui dentro tem um doceiro, um senhor que mora aqui há 25 anos. Por que ele precisa sair? Quando as pessoas começarem a circular por aqui, elas vão querer levar coisas para casa. Um docinho, por exemplo.
Na Abaçaí, a gente tem um princípio em cima dos versos de Vinicius de Morais: “Pezinho ante pezinho, lá vai São Chiquinho”. Não precisa dar um pulo. À medida que a gente exercita isso, vai vendo até as relações que se estabelecem na região, porque como em qualquer lugar são relações políticas que, às vezes, são intrincadas. E nós não somos entidades políticas. Conversamos com Pedro, com Paulo, com gregos e troianos. É bom que as pessoas saibam. Não venham nos falar mal do outro. Não venham nos contar do outro. Não nos interessa.
O Semanário: O que vai ser feito em Rafard?
Macedo: Aqui vai ser o coração do Quadrante Caipira. O sotaque, o dialeto caipira, é a primeira coisa que nós queremos colocar em destaque. Ao contrário de como foi colocado durante um tempo, isso é um valor. E nós queremos mostrar isso. Não abandonem. Tanto que a ideia desse Quadrante já tem uns 15 anos. Nós já quisemos fazer um Revelando São Paulo aqui na região.
Abrindo um pouco o foco, estando aqui nós vamos nos esforçar para acontecer um Revelando nesse Quadrante. Em Piracicaba, talvez, ou onde estiver com mais condições de receber para a região. Entretanto, aqui a gente vai fazer pulsar o coração da Abaçaí. Nossa preocupação é formar.
Nós nos apoiamos em Paulo Freire, ou seja, educação, cultura e, aqui, produção artística ou arte. Cultura, mais abrangente; educação, como a gente lida com essa cultura e com o cidadão. Nos preocupa muito trabalhar cidadania, que as pessoas aprendam a enxergar o mundo em que estão nas menores coisas. Até, por exemplo, aprender a sentar-se a mesa, dividir, respeitar o outro, con-dividir. Tudo isso a gente pretende.
Estamos prevendo uma curva de três a cinco anos, para conseguirmos implantar e buscar recursos, porque estamos chegando com a camisa do corpo e com um know-how, uma história de 42 anos. Mas, como tudo o que nós fizemos até agora foi assim, a gente correu atrás e nunca faltou, vai acontecer também.
O Semanário: O que vocês vão fazer com a escola da fazenda?
Macedo: Na escola queremos fazer um espaço de formação ou com trabalhos para a comunidade ou para a região, e até com grandes programas de imersão, que é um conceito que a gente aplica: os diretores de teatro do Quadrante se reunirão aqui numa sexta, sábado e domingo e traremos outros profissionais que vão trabalhar com eles durante os dois ou três dias.
Isso é aplicado na Universidade de Buffalo há muito tempo. Eu tive contato com esses projetos há mais de 40 anos. E as pessoas aqui no Brasil, da área de publicidade, pagavam altas notas para ficarem lá 20 dias, um mês. Eram grandes imersões. E nós aplicamos isso em nossas ações. Mas não é para pessoas escolhidas. Se tivermos imersão para diretores de teatro e aparecer uma pessoa que tenha curiosidade, ela vai ser incluída também.
Nós temos o Balé Folclórico de São Paulo, de 35 anos. Vamos abrir uma sucursal do balé aqui. Não virão pessoas de lá para dançarem aqui. Nós vamos formar aqui. Voltamos ao ponto de partida: formar é desafiador. Significa que vai ter muito suor, muito esforço para colocar o pessoal fazendo aula de dança. Não precisa fazer aula de balé. Para o Balé Folclórico vai ter que aprender percussão, cantar, atuar, um monte de coisas. E não vamos pedir atestado de procedência: se é de Mombuca, de Capivari. Quer vir, venha.
Nós vamos trazer para cá o Núcleo de Produção dos Bonecos Gigantes, que alimentamos há mais de 35 anos. Estava conosco em nossa sede, em São Paulo. Há alguns anos a gente parou um pouquinho. É um trabalho de pesquisa, de investigação sobre a produção desses bonecos de rua. Aqui mesmo na região tem em vários municípios, começando com Tatuí, o Cordão dos Bichos. Além de valorizar, de destacar isso, pessoas que nunca tiveram contato vão poder aprender fazer e manipular.
As propostas são muitas. Os artistas poderão ser polivalentes. E cada um vai descobrir seu espaço. Só que em vez de lidar individualmente com o que você faz, você vai aprender a lidar em grupo, a articular. Nós queremos que as pessoas saibam que não veio um povo de fora para ocupar. Veio um povo de fora como fermento na massa. Tem coisas preciosas aqui e nós viemos para ajudar a fazer, crescer, envolver.
O Semanário: E a Igreja São Bernardo?
Macedo: Nós já ocupamos. Cabem 200 pessoas lá dentro. O pessoal dizia que não podia entrar, porque estava em ruínas, ou que não podia abrir a porta, porque tinha um enxame de marimbondos. Tudo o que foi medo. Na nossa chegada, nós plantamos a bandeira da paz na frente da igreja e a abrimos. Estava com mais de um dedo de pó, de terra, no chão. Agora, o pessoal da Prefeitura já veio limpar pela segunda vez.
Nós estamos negociando um restauro de emergência, porque ela é muito grande, muito boa, um espaço privilegiado. Ali dentro, a gente pode fazer recitais. Ou vamos fazer um sarau. Nós temos o Mapa Cultural, ele dá conta de toda essa produção. Como é que a coisa ganha brilho? Fazendo encontros.
Mensalmente, na noite da lua cheia, nós vamos fazer o Batuque ao Plenilúnio. Plenilúnio é a lua cheia, a plena lua. Queremos consagrar essa semana ao batuque. Nós fazíamos isso na capital, no Parque da Água Branca, no Centro, não tinha iluminação. Então, na noite de lua cheia ele ficava prateado. Lindíssimo. A gente levava batuque, jombo e outras expressões. Vamos trazer para cá. O pessoal do batuque está esperando.
Nós vamos lidar, não só com o músico, com o erudito ou com o teatro, mas também com essas manifestações de tradição. Agora, do mesmo jeito que tem batuque, para otimizar, nesse mesmo período poderemos abrir a igreja e fazer um sarau, também. O povo da capital vai baixar aqui. Não tenha dúvida.
O Semanário: E quando vocês vão começar a colocar a mão na massa?
Macedo: Já estamos começando a fermentar um pouquinho. Eu vou pedir paciência por uns 40 dias. Nesses 40 dias tem muitas cartas que a gente já lançou. Para esquentar mesmo, mais tempo. Uma coisa eu te digo: nós geramos confiança nas pessoas. Para você ter uma ideia, a gente está com uma quantidade de pratos enorme. Vieram trazer aqui de lá de Guararema e já disseram que vão mandar mais uns 200.
E prato é uma coisa tão simples, né? Um pagou transporte, outro pagou não sei o que e assim vai. Tem colaboração, e eu acho que isso vai estimular, inclusive, os empresários, as pessoas da região. Deverá ser um chamamento. Se isso aqui continuasse fechado, como a gente conseguiria estimular as pessoas? Então, tem cafezinho, bolinho. A cozinha está em ordem. E, com isso, as pessoas percebem que está vivo. É para provocar. Venham tomar um café. Essa é a estratégia.
O Semanário: Qual é a sua percepção sobre Rafard?
Macedo: Tem uma briga de foices entre os políticos daqui. E isso provoca o quê? Uma desarticulação na comunidade. Eles ainda não se tocaram disso. Você vê as pessoas passando na porta da fazenda e se perguntando se podem entrar. Elas têm medo. Muitos vêm assim. Até gente da classe média. No começo, vinha gente de carro, entrava, dava uma volta devagarzinho e saía. E nós querendo dar “bom dia”.
Precisamos motivar a comunidade. Rafard ficou muito pra baixo. É a avaliação que eu tenho. E tem outra coisa que é muito séria: sabe esse lance político que colocou Rafard, Capivari e Mombuca em estado de guerra? Sim. Porque é político. Você vê isso no campo da religião, também. É uma coisa de louco. Por outro lado, a construção que estamos fazendo é outra. Nós fizemos de propósito: no dia do primeiro almoço que oferecemos, em dezembro, vieram dez segmentos religiosos.
Só digo uma coisa: qualquer pessoa poderá cometer uma gafe com a gente. Mas saiba reconhecer e pedir desculpas. Porque é assim que o mundo tem que caminhar.
O Semanário: A Abaçaí tem planos para a igreja evangélica localizada na fazenda?
Macedo: Eu fiquei sabendo depois que muitos líderes evangélicos vieram no almoço. Me disseram que o filho do doceiro veio, mas ficou intimidado. Ele chama Caxi e é pastor da Congregação Cristã do Brasil que tem aqui. Então, pedi ao pai dele que o trouxesse para tomar um café. Caxi veio sozinho e, no meio da conversa, perguntou com toda a transparência: “Toninho, a igreja vai ter que sair daqui?” Olhando para ele falei que sim. Ele ficou me olhando e disse “Está certo.”
Depois, pedi ao Caxi que trouxesse a família dele para jantar com a gente na noite seguinte. Fiz um jantar para todos eles. Tinha umas 15 pessoas. Veio também uma pessoa de outra religião. Daí eu convidei o Caxi para rezar por todos nós, mas ele disse que não, que preferia ouvir essa outra pessoa.
Isso pode ser construído. Rafard, Capivari e Mombuca estão precisando disso, de diálogo, não de briga, não de detração. Isso não leva a nada. Muito mais do que a tarefa de recuperar isso aqui, temos de recuperar a autoestima, a credibilidade, a confiabilidade das pessoas que vivem aqui. Isso é que vai dar muito trabalho.