Uma das maiores figuras literárias brasileiras se destaca, sem a menor sombra de dúvidas, Menotti Del Picchia (1892-1988). Foi membro da Academia Brasileira de Letras e teve a sua inserção profissional como tabelião e advogado, além de se destacar como poeta, jornalista, romancista, cronista, pintor e ensaísta.
Conhecedor profundo do panorama literário brasileiro, conviveu com ilustres escritores de seu tempo, mercê de suas atividades políticas e vastíssima produção de obras, ainda contando como membro da Academia Paulista de Letras. Foi notável em tudo que exerceu, sendo respeitado pela sua forma de viver e reconhecer, nos mais simples contemporâneos das letras, o seu talento e capacidade expositiva.
No jornal “A Gazeta”, de São Paulo, datada de 14 de março de 1950, portanto há 70 anos, publicou um interessante artigo, com o título de Bauru e Rodrigues de Abreu, enaltecendo a figura capivariana-bauruense do poeta da Casa Destelhada.
Para recordar esta belíssima, profunda e tocante exposição do ilustre autor de Salomé, reproduzo, na íntegra, o que foi publicado na “A Gazeta”, com o título de “Bauru e Rodrigues de Abreu”:
“Rodrigues de Abreu era de Capivari, mas foi cartorário em Bauru. Conheci o poeta quando lavrava escrituras. Dele, prefaciando uma das edições da “Sala dos Passos Perdidos”, dei esta impressão: “Em frente à minha mesa está Rodrigues de Abreu. Vivo. Móvel. Sorridente. Mas triste”.
Minha memória mediúnica o reencarna pela magia afetiva da saudade. Cobre-lhe o corpo magro – casa destelhada onde residiram em boa camaradagem a Doença e o Ideal – um capote sungado. Não perde tempo em elegâncias quem sabe que se vai demorar pouco neste mundo e “partirá numa galera frágil rumo do Mar Desconhecido”. O cabelo rebelde escapa-lhe, negro, do chapéu de abas moles. A barba reponta-lhe, híspida e nascente, no queixo, barba juvenil, rala, brasileira, arisca. Essa cabeça melancólica vive toda na febre luminosa dos seus grandes olhos belos e melancólicos.
Fala com humildade. Não tem a revolta negativa dos cépticos – que é um silêncio amargo eriçado de ironias; n/ao tem o desalento dos covardes – que é a lamentação enfadonha; não tem agressividade dos revoltados – que é o ódio fosforescente dos vencidos. Há nele uma íntima, uma absurda alegria por estar vivo, uma ânsia ingênua de fraternidade e uma evangélica resignação.
Um Apolo eufórico e desportivo não irradiaria mais simpatia envolvente que este poeta tísico. De onde vem a sedução desta voz frágil que reboa nas cavernas dos pulmões, tal qual os acordes de um órgão? De onde flui a mística ternura que nos irmana à fragilidade desta criatura feia de suavidade e de sofrimento? Apenas de uma alma. Alma pura, cristalina, que se desmancha em versos.
Agora que a “casa destelhada desabou” e que há tanto tempo essa alma se integrou no espírito do universo, fico a pensar em quanto força reside na pura inteligência. Rodrigues de Abreu, tísico, tímido, pobre, isolado quase sempre em sanatórios, mal tocou o mundo no que ele tem de tangível e material. Não fez como esses demagogos de pescoço inchado discursos extensos, nem manipulou milhões roubados, nem fez a oferta pródiga das prebendas burocráticas.
Esgueirou-se apenas pela vida, humilde e esquivo, como a imaginar que seu pobre corpo, roído pelos bacilos, ocupava injustamente um lugar no espaço. Entretanto, Rodrigues de Abreu está mais presente que todos os poderosos do seu tempo, os homens ruidosos e dinâmicos que enchiam os jornais com seus gestos e seus nomes. Capivari disputa-lhe o berço. Bauru quer para ele a eclosão do seu espírito. Tanto Capivari quanto Bauru, nessa emulação tão nobre, merecem nossos aplausos. Acusam à cultura das suas populações, pois ambas as cidades mostram ser vivo seu culto pela inteligência.
Já tive oportunidade de falar de Rodrigues de Abreu ao povo de Bauru. Foi nessa cidade que se firmou nossa amizade quando o humilde cartorário e poeta ia procurar, no hotel onde me hospedava, seu irmão poeta e futuro tabelião. Irmanaram-nos duas profissões: a das musas e a das notas tabeliões. Desde esse dia fomos fraternos amigos. Tive inúmeras vezes as primícias dos seus poemas. A mim me coube a honrar de inaugurar seu nome numa das ruas desta capital.
Agora vai Bauru erguer um monumento ao criador de “A Sala dos Passos Perdidos”. Bem haja o povo da industriosa cidade, que é um orgulho da organização urbanística de São Paulo. Erguendo uma estátua a Rodrigues de Abreu não repete esse tão repulsivo gesto áulico de incensar, em toda a parte e na maioria das vezes sem razão nem mérito, os caricatos césares do momento. Mais que a um cidadão, erguem o monumento a uma alma. E a alma de Rodrigues de Abreu foi das mais belas e das mais puras de quantas cirandaram por este vale de lágrimas…”
ARTIGO escrito por J. R. Guedes de Oliveira, ensaísta, biógrafo e historiador. Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do jornal. São de inteira responsabilidade de seus autores.