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Ainda há “temor de Deus”? – 1ª parte

Ao tratar do “temor de Deus”, caro leitor, e sempre sem nenhuma pretensão de lhe melhor definir doutrinariamente, competência que me escapa, tomo-o nas acepções relacionadas ao sentido do sagrado e ao Juízo Final que enfrentaremos, para mim duas verdades absolutas. Logo, se você que me lê não crê na permanente ação de Deus no mundo e nem na existência do Inferno enquanto destino post mortem eterno e imutável da ausência de Deus, ou o “estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados” (CIC nº 1033; sic), sugiro que nem siga adiante na leitura.

Há mais de 37 anos que minha rotina diária passa pela ciência do Direito, sendo 27 deles na magistratura, minha vocação de vida discernida desde o tempo do antigo “Colegial”. Várias e distintas foram as áreas atravessadas, em 6 cidades diferentes, no exercício de julgar os interesses dos meus próximos, passando pelas esferas criminal, infância e juventude, família, assuntos públicos e cível, onde me encontro há quase 20 anos. Cada uma tem seus desafios e complexidades, mas em todas o indivíduo e/ou a sociedade, feita de homens e mulheres de carne e osso, marcam-se presentes.

Com o passar dos anos, a maturidade humano-espiritual foi-se incrementando, e, com ela e pela Graça de Deus, a sentença de Nosso Senhor Jesus Cristo transcrita no Evangelho de São Lucas passou a ser minha companheira, a despeito de algumas infidelidades: “A quem muito foi dado, muito será cobrado” (Lc 12, 48). Não é pouca coisa e lhe compartilho esse testemunho com muita humildade!

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Equidade, ou bom senso, é atitude imprescindível no exercício da judicatura, aqui me valendo de Aristóteles para quem, em seu “Ética a Nicômaco”, justo é o homem que cumpre e respeita a lei; e, injusto, o homem “sem lei” e ímprobo, havendo o “meio-termo” temperado pela equidade a fim de conferir proporcionalidade às decisões ao corrigir situações de possível injustiça na aplicação da própria lei.

Na sociedade atual, em distanciamento de Deus a passos largos, o homem e sua falsa autossuficiência acham-se “acima do bem e do mal”, situação que piora quando esse mesmo homem detém poder nas mãos sobre os destinos de outras pessoas, como um magistrado.

Essa pessoa, se se julgar “o máximo”, ignorará por completo que “O temor ao Senhor é o princípio da sabedoria” (Provérbios 1, 7). Essa pessoa, que no infantilismo ou arrogância de sua “fé” –ou na sua própria ausência— achar que “Deus é bonzinho, é amiguinho, é só misericórdia”, não passa de um tolo ou faz questão de ignorar que desde sempre “O Senhor é misericordioso e justo; o nosso Deus é compassivo” (Salmo 116, 5; grifei).

A propósito, tomo emprestado e em reforço o pensamento de nosso Bispo Diocesano, Dom Devair Araújo da Fonseca, que em homilia recente, ao falar de conversão e do seguimento de Jesus, foi cirúrgico: “Jesus não passou a mão na cabeça dos discípulos dizendo: ‘Podem viver como vocês quiserem, do jeito que vocês quiserem, e ainda assim vocês serão os meus discípulos’. (…) Ninguém é obrigado a seguir Jesus! Mas quem se dispõe a segui-Lo, deve seguir o Evangelho”, Evangelho que, segundo nosso Pastor, não pode ser adaptado às nossas conveniências e nem à “cultura do mundo atual”.

Por mais elementar que possa parecer, julgar é conduta que não pode ser tomada “a partir do fígado”, mas do cérebro e do coração, com reflexão e serenidade. As piores decisões judiciais, sem sombra de dúvida, são aquelas embebidas na raiva, prenhes de retaliação e calcadas na intemperança. Tornam-se, portanto, rematadas injustiças, arbítrios asquerosos, vinganças estatais.

Dias atrás (antes do dia 30 de agosto), Fernando Schüller, um dos pensadores mais lúcidos nestes tempos de trevas autoritárias, quando ainda se podia democraticamente escolher entre acessar ou não sua página no “X” (antigo Twitter), vaticinando o que estava por vir abordou o tema da “liberdade de expressão” com precisão suíça, publicando o seguinte: “O direito à liberdade de expressão não é absoluto. Mas o poder de uma autoridade para decidir sobre este direito também não é absoluto. Por isso criamos as leis e o devido processo legal. Restrições a direitos sem o devido amparo legal só tem um nome: abuso de poder”.

No momento em que concluo estas linhas asseguro que boa parte da sociedade, na qual me incluo, está com medo de simplesmente emitir opiniões e vir a ser multado, censurado, ou até preso, mesmo que despida de alguma ameaça ou ofensa! Longe de ser uma “histeria coletiva”, antes é uma singela análise crítica da realidade que nos cerca, tanto que se mostra impossível não relembrar a célebre reflexão do historiador católico britânico, Lord Acton (1834-1902), tão apropriada aos perigos autoritários dos dias que correm: “O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Até aqui voltamos nosso olhar para o indivíduo. Em continuação, no próximo artigo (neste link) vamos considerar, sempre sob a ótica do “temor de Deus”, o papel e o comportamento das pessoas que o cercam e com quem ele se relaciona.

Rogério Sartori Astolphi
Juiz de Direito

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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