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A utopia do Evangelho

A palavra “utopia” significa lugar ou estado ideal, de completa felicidade e harmonia entre os indivíduos. O termo foi usado como título de um livro pelo escritor inglês Thomas More, em 1516, para descrever uma ilha imaginária com uma sociedade perfeita. Utopia é um conceito e uma construção que desafia as realidades existentes, propondo um ideal de sociedade onde a justiça, a igualdade e a harmonia prevalecem sobre todas as formas de conflito e desigualdade.

Os filósofos e pensadores seguintes têm explorado o conceito de utopia não apenas como uma fantasia, como ideia imaginária, mas como uma forma de avaliar a realidade e propor novas possibilidades sociais, políticas e econômicas.

Nesse sentido, a utopia serve como um farol, como uma inspiração, que orienta para além das limitações e fracassos das realidades atuais. Nesse caminho, os sistemas políticos e as ideologias apresentam propostas utópicas, com o desejo de oferecer uma alternativa para a realidade.

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Cada proposta enxerga um futuro melhor, com melhores resultados, maiores benefícios e menores erros ou desigualdades. Mas para que essas propostas possam ser implantadas, é necessário chegar ao poder e, para chegar ao poder, é preciso travar batalhas eleitorais ou lutas armadas, como no caso das ditaduras.

Contrastando com as utopias seculares, o Evangelho apresenta uma visão radicalmente diferente de sociedade, que pode ser interpretada como utópica devido à sua proposta de uma ordem baseada no serviço, na humildade e no amor incondicional. Jesus fala sobre isso em trecho do Evangelho segundo Marcos (9,30-37). Ele ensina que a verdadeira grandeza é encontrada no serviço aos outros, especialmente aos mais pequenos e vulneráveis. Esse ideal evangélico desafia as normas sociais e as estruturas de poder do mundo contemporâneo.

Num tempo dominado pelo individualismo, consumo excessivo e competição desenfreada, o chamado de Jesus para ser “o servo de todos” é uma crítica às nossas práticas e prioridades atuais.

A utopia do Evangelho não é uma fuga da realidade, mas um convite para transformá-la, que encoraja os cristãos a viverem de acordo com valores que, embora pareçam impraticáveis à primeira vista, têm o poder de provocar mudanças profundas e duradouras nas comunidades e sociedades, pela conversão pessoal. É uma visão que não apenas critica o estado atual das coisas, mas oferece um caminho concreto para a renovação espiritual e social.

“O Evangelho não deixa as coisas como estão; quando passa e é ouvido e recebido, as coisas não permanecem como estão. O Evangelho provoca a mudança e convida à conversão.” (Papa Francisco, 14 de agosto de 2022).
A utopia do Evangelho passa pelo encontro com Cristo, a contemplação e a ação. “Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma” (Tg 2,17).

Isso significa escolher a generosidade em vez da ganância, o perdão em vez da vingança, a comunidade em vez do isolamento. Ao adotar esses princípios no dia a dia, os cristãos podem oferecer ao mundo um exemplo vivo de como a utopia do Evangelho pode se manifestar e transformar a realidade.

Ao contrário dos sistemas políticos e das ideologias, que propõem uma mudança das estruturas, o Evangelho propõe a mudança pessoal, como via de transformação social. A luta de classes não faz parte da utopia do Evangelho, mas a justiça social que vem pela conversão dos corações sim.

Portanto, enquanto a utopia parece um conceito distante e idealizado, que supõe uma luta que deixa vencidos e vencedores, o Evangelho traz para o contexto da vida cotidiana os desafios de transformar a sociedade, mas a grande batalha é travada intimamente.

Cada cristão que aceita o desafio de seguir o caminho de Jesus abraça essa proposta utópica que não se encontra em um “não lugar”, mas que é vivida e experimentada aqui, semeando as sementes de um futuro mais justo e fraterno para todos.

É claro que os cristãos devem ter a consciência clara de que o presente não esgota a vida e o objetivo final é a eternidade, que transcende esse mundo e todas as coisas. Mas é pelo empenho e compromisso no presente que se pode verificar os frutos da conversão e do Evangelho.

Dom Devair Araújo da Fonseca
Bispo de Piracicaba

Jornal O Semanário

Esta notícia foi publicada por um dos redatores do jornal O Semanário, não significa que foi escrita por um deles, em alguns dos casos, foi apenas editada.

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