24/07/2015
Começar de novo: a história de quem quase experimentou o fim
No dia 8 de março, Renan sofreu um acidente quando voltava para casa; ele perdeu quase todo o sangue do corpo e passou 30 dias no hospital; desses, cinco em coma induzido
CAPIVARI – Renan voltava da casa da mãe pela Rodovia Nelson Caproni, sentido Piracicaba, quando um dos pneus de seu Gol prata, fabricado em 2005, furou ao passar sobre um enorme buraco, a duas curvas do portal de Rio das Pedras. Imediatamente, o ajudante geral de uma fábrica de sacos plásticos, que também é cantor, parou no acostamento para medir o tamanho do prejuízo. Mal sabia ele que o estrago maior ainda estava por vir.
O músico havia feito shows na sexta-feira e no sábado, em Piracicaba e Tatuí, e depois passou o domingo, 8 de março, de folga na casa da mãe Ivani Aparecida Bordini da Silva, de 47 anos, em Capivari. Renan Augusto da Silva, de 23 anos, foi acompanhado da esposa, a auxiliar recreacionista Tatiane Cristina Quiodi, de 22 anos, e da sogra Edna Elisabete da Silva Moraes, de 51 anos.
Poucos minutos depois de encostar próximo a uma plantação de cana-de-açúcar, um amigo que passava no sentido contrário reconheceu o jovem e estacionou em frente ao seu carro para ajudar. Naquela noite, Renan e Cristiano trocaram o pneu do veículo por volta das 21h30. Tatiane ficou esperando fora do carro o tempo todo e até se ofereceu para retirar o triângulo da pista.
“Eu guardei o macaco e falei para ele guardar o pneu, que era pesado, enquanto eu pegava o triângulo, mas ele disse que não, que ele pegava e depois voltava para guardar o pneu”, conta. A partir daí, Renan não se lembra de mais nada. Quando virou em direção ao Gol, um terceiro veículo o acertou pelas costas e o prensou entre os dois carros que estavam estacionados. Em seguida, seu corpo foi arremessado a dez metros dali, quase sem vida.
Algo que poderia ser um porta-malas acertou a cabeça de Tatiane, que estava grávida de três meses, jogando a moça para dentro do canavial. Já acordada, a jovem gritou o nome da mãe, que respondeu na sequência. Cinco minutos antes do acidente, Edna foi convencida pela filha a esperar fora do carro. “Não sei por quê.” Se tivesse ficado ela também teria sido atingida, porque o banco traseiro do Gol levantou com a força da batida.
Depois, Tatiane chamou pelo marido, mas ficou sem resposta. “Como eu estava atordoada com a pancada comecei a andar pelo canavial a procura do Renan. Saí correndo atrás dele e nada. Quando voltei para a rodovia ele estava lá, estirado no meio da pista.” Renan sentia muito sono. “E eu dizia ‘você não vai dormir. Vai ficar aqui comigo. Vamos fazer uma oração para que a ambulância chegue logo’.”
Enquanto os celulares procuravam sinal para que a esposa do cantor pudesse chamar socorro, Renan agonizava sem a panturrilha da perna direita e com fraturas expostas no tornozelo, na tíbia e na fíbula da perna esquerda, pois ambas estavam desprotegidas pela bermuda jeans. O sapatênis preto ficou encardido de barro, porque tinha chovido naquele dia, e teve de ser descartado.
Embaixo da camiseta preta do Taz Mania, seu corpo escondia perfurações no intestino e no abdômen. O braço esquerdo também quebrou, além do relógio branco da marca Puma. Um pequeno terço laranja de borracha, em forma de pulseira, arrebentou na hora e se despediu de Renan ali mesmo, naquela estrada gelada e escura, banhada por quase todo o sangue do corpo do rapaz.
A ambulância chegou 15 minutos depois que Tatiane conseguiu ligar. Uma moça parou para ajudar, conversou com ela e com a mãe e explicou aos policiais tudo o que havia acontecido. No carro de Cristiano, que estava acompanhado da esposa, grávida de quase oito meses, e de uma filha pequena, ninguém ficou ferido. Já Renan passou 14 dias na UTI e mais 16 no quarto da Santa Casa de Piracicaba.
“Ele ficou três dias em coma induzido”, acrescenta a auxiliar recreacionista. “Era para eu ter sido levado até o Hospital dos Fornecedores de Cana de Piracicaba, mas como eu já estava falecendo levaram na Santa Casa mesmo”, conta o músico. “Falaram que eu estava delirando, que não falava coisa com coisa.” “Ele recebeu mais de 16 bolsas de sangue, porque perdeu muito sangue pela panturrilha”, completa Tatiane.
Recuperação
“Na UTI eu delirei bastante. Fiquei bravo com meu irmão, sonhei que minha mulher e eu íamos ter cinco filhos. É que lá deram bastante remédio. Quando um enfermeiro veio colocar Dipirona na minha veia, lembro de ter dito a ele que se queria me matar, que matasse logo. Foi muita coisa”, recorda Renan, entre risos, quatro meses depois do acidente e quase totalmente recuperado.
Entre uma alucinação e outra, o cantor também pedia notícias do bebê e perguntava sobre os shows que faria no próximo sábado, 14 de março, em Tatuí e Porto Feliz. Ao contrário do marido, Tatiane ficou apenas algumas horas em observação por causa da gravidez. A gestação, que completou oito meses, tem previsão de término para dia 14 de agosto, quatro dias depois do aniversário do pai.
Apesar do receio da mãe, tudo indica que o parto será normal. “Ela quer cesária e ele estava viradinho. Ela queria que ficasse assim, mas fomos fazer ultrassom na quinta-feira, 16, e ele se movimentou. Já está encaixadinho. Logo o João Pedro está aí”, comemora Renan. Depois do susto, o jovem só pensa no primeiro filho com Tatiane. “Vou ensiná-lo a tocar violão, seguir o ramo do pai.”
Enquanto se recuperava no hospital, Renan pegou uma infecção na perna direita, o que levou a três cirurgias para retirada de necroses na panturrilha. Os médicos chegaram a dizer à Tatiane que se a ferida necrosasse novamente seria necessário amputar a perna do músico. Apesar de desconfiado, isso não desanimou Renan, que pediu para que tirassem suas pernas, contanto que o deixassem viver.
Os demais ferimentos foram se curando aos poucos, mas sem grandes problemas. “Na barriga teve de abrir um palmo mais ou menos, porque tive perfurações no intestino e no abdômen. Aí teve de abrir para ligar tudo de novo. Foi como nascer de novo”, compara. Para o braço, três meses de gesso foram suficientes. Melhor do que abrir de novo para colocar platina, segundo Renan. “Tive de escolher.”
Já a perna direita recebeu a proposta de um enxerto que não era muito garantido. “O médico falou que dava para tirar da coxa e colocar na panturrilha, mas que poderia ter rejeição. Então eu preferi deixar como está”, explica. “Para mim isso não é nada. Comparado ao que eu passei? Isso é tranquilo, não tenho nada. Estou feliz por Deus ter me dado outra chance.”
Para acelerar a cicatrização, Renan foi submetido a um método inovador e que ele assemelhou a um submarino. “Você entra, as portas fecham e eles jogam o ar todo para você, 100% de oxigênio. Eu colocava uma máscara e vinha tudo no nariz, que jogava para o pulmão que ia passando pelos ferimentos”, descreve. As 39 sessões ocorreram no Centro Hiperbárico de Piracicaba e, assim como os demais procedimentos, foram custeadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“Agora só estou fazendo fisioterapia. Porque por enquanto só posso colocar 30% do meu peso na perna esquerda”, diz o rapaz, ao lado do par de muletas. “Nela tem um osso que eu quebrei. Coloquei platina em três lugares e ainda está quebrado, só que vai colando com o tempo. Pelo que a fisioterapeuta falou tem umas 40 sessões. Até outubro, se Deus quiser já estarei andando sem muletas.”
Música
Renan começou a se envolver com a música aos 13 anos. “Sempre toquei com aquela mente de querer crescer profissionalmente. E sempre naquela de querer fazer música e fazer com que ela chegue a todo mundo. Eu componho, mas também faço cover, toco bateria, baixo, guitarra, violão…” Já se apresentou por toda a região e até em cidades mais distantes. Chegou a fazer 15 shows em um mês.
O marido de Tatiane disse que está voltando para os palcos aos poucos, com um show aqui e outro ali, apenas em Piracicaba. “Mais para conseguir um dinheiro para ajudar em casa, porque estou encostado no INSS, mas só esse dinheiro não ajuda, ainda mais agora com o bebê.” Ele contou que, após o acidente, várias oportunidades de cantar apareceram, mas teve de recusar, com dor no coração.
“Tem dois caras de Capivari que têm de ir colocar minhas caixas de som no porta-malas, porque eu ainda não posso. E outra, até esses dias eu estava sem carro, dependendo de ambulância para fazer fisioterapia. Consegui vendê-lo recentemente e peguei outro quase igual no lugar, só que mais novo”, conta. “Agora está um pouco mais fácil, mas por enquanto ainda não posso pegar peso.”
No entanto, quando questionado sobre a vontade de seguir carreira de cantor, Renan é firme: “É o que eu mais quero. Eu luto sempre para conseguir alguém, algum empresário que ajude. Quero seguir isso”. De acordo com ele, para ter visibilidade no mundo da música, é preciso um bom empresário, que venda shows cada vez mais para fora, e algum cantor famoso que grave uma música sua.
“Ou que me deixe gravar com ele”, acrescenta. Certa vez, o ajudante geral começou a gravar um CD em estúdio, mas só finalizou uma canção e precisou parar, por falta de dinheiro. “Pretendo voltar, só que ainda não dá. E tentar conseguir algum apoio, porque eu pago aluguel, pago carro.” Para se apresentar com voz e violão ele cobra em torno de R$ 250; R$ 500 se for aniversário e R$ 700 para casamento. Esses valores, porém, só valem se não tiver de levar outros músicos. “Tenho sanfoneiro e carron, daí tem de cobrar um pouco mais”, explica.
Superação
Após tudo o que passou, Renan disse que aprendeu a nunca mais reclamar da vida. Segundo ele, todas as pessoas deveriam fazer o mesmo. “Você tem de acordar todos os dias, levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus por estar vivo, e seguir em frente. Muitas pessoas gostariam de ver o céu, as folhas e não podem. Então o problema que você pode ter é mínimo comparado ao que elas têm.”
Da UTI ao quarto, o jovem contou que foi acompanhado de uma Nossa Senhora, presente da avó, que já morreu. “Daquelas que abrem as portinhas, sabe?” Ele pediu a Tatiane para levar a imagem e deixá-la com ele durante todo o tempo em que passou internado. O símbolo da fé surpreendeu os enfermeiros da Santa Casa de Piracicaba. “Não acreditavam que alguém tão novo poderia ter tanta fé.”
“Deus faz essas coisas para mostrar que a gente é forte, para ver até onde vai a nossa fé. Mesmo delirando, o médico contou que assim que eu dei entrada no hospital eu olhei para cima e falei despreocupado: ‘Deus vai me tirar dessa’. E é isso. Deus sabe o que faz”, afirma. E, o que aconteceu, ele já deixou para trás. “Agora estamos esperando o bebê chegar. Chegando será só felicidade. Começamos uma vida nova.”